Colector de corações

Parte 3

- A Princesa. – Assumiu Midsat, recordando-se da conversa que Lainos tinha tido com Slosa.
- Princesa? Por favor. – Desculpou-se a rapariga roubando um pedaço de presunto de Midsat e continuou, mastigando. – Uma rapariga faz um pequeno trabalho, depois continua a fazer uns trabalhos por conta própria e do dia para a noite é intitulada a princesa dos ladrões.

Com essa expressão Midsat sentiu-se elucidado e assim foi explicado o porquê do nome de Princesa e a razão de Lainos não a ter nas suas boas graças. Ela era uma ladra e pela alcunha dada pela população, uma bastante boa, portanto era bastante normal que ladrões e mercadores tinham conflitos de interesse.

- Então diz-me. Estás a gostar de estar por aqui? – Continuou por entre dentadas no presunto que tinha tirado.
- Qual é o teu interesse? – Questionou Midsat sentindo-se pouco á vontade.
- Não sei. Nova cara na cidade, especialmente nestes lados. Para alem disso não pareces ser o comum viajante que passa por esta lixeira. Não, tu és algo mais não és?

A conversa começou a tomar um caminho demasiado inquisitivo. Enquanto falava, os olhos de Leiva não se fixavam em nenhum lugar por vários segundos, mantinha um sorriso constante mesmo enquanto mastigava, falava ou soprava para afastar o seu cabelo dos olhos e apesar ter conservado um ar relaxado e um pouco tolo durante a conversa, havia algo que transparecia no seu olhar. Ela sabia de algo que não queria deixar mostrar e o seu questionário era a sua testemunha.
Ambos ficaram em silencio por um bocado. A Princesa olhava para o fundo da sala acabando de comer o pedaço de presunto que tinha roubado e Midsat mantinha-se imóvel com os olhos postos na criatura enigmática que se sentava à sua frente.

- Vá lá. Tu dizes-me um pouco do que achas dos teus primeiros dias, eu conto-te um pouco da minha estadia e quem sabe mais tarde casamo-nos, temos filhos e vivemos felizes.
- Eu não sei quem tu pensas que és mas esta conversa acabou aqui. – Respondeu Midsat levantando-se abruptamente.

Nesse instante, Leiva agarrou num dos braços de Midsat para impedi-lo de se levantar. Midsat, irado com a atitude da ladra não olhou a meios e desembainhou a sua navalha encostando-a ao pescoço de Leiva. Ela como reflexo retirou também a sua adaga e encostou-a ao estômago de Midsat. Mantiveram-se de olhares cruzados, armas coladas à pele e com a tensão espalhada pelo ar, apenas com um simples detalhe mantinha-se intacto, mesmo com o fio da navalha a tocar na sua garganta, Leiva mantinha o mesmo sorriso.

- O que vem a ser isto? – Gritou Slosa do outro lado da estalagem. – Leiva! Que direito tens tu de arranjar confusão no meu estabelecimento?

Mantendo os olhares cruzados, Midsat e Leiva hesitaram por um bocado antes de voltar a embainhar as armas.

- As minhas desculpas senhora Slosa. – Desculpou-se Midsat fazendo uma pequena vénia à matrona.
- Não precisa de pedir desculpas Midsat. – Respondeu Slosa a Midsat com a sua voz serena. Passando de seguida para um tom que soava a fúria ao falar com Leiva. - Essa concubina de Deraq traz me nada para alem de problemas.
- As crianças só estavam a brincar um bocado. – Troçou Leiva metendo a língua de fora.

Midsat olhou-a de esguelha, a rapariga não tinha um pingo de honradez na sua alma ou na sua fala, até com Slosa brincava. Ela tinhas os olhos postos em Slosa e com as mão atrás das costas balançava nos bicos dos pés, sempre com aquele sórdido sorriso a marcar-lhe o rosto, como cicatriz que já mais desapareceria. Slosa mantinha-se quieta e serena no seu lugar, mas os seus olhos demonstravam que ela lutava contra si própria para controlar a fúria.
Havia palavras no ar não proferidas e algo que escapava à percepção dos menos atentos e uma tensão estranha continuava espalhada pelo ar, mas agora bem mais densa.

- Não senhora Slosa, eu é que tive culpa no sucedido. – Insistiu Midsat. - E irei lhe pagar pelo distúrbio, mas agora estou atrasado para um encontro, terei de sair.
- Oh. É uma pena. – Comentou Leiva piscando um olho a Midsat. – Talvez nos encontremos mais tarde.

Sem interesse em dar resposta à provocação, Midsat saiu a estalagem, mas isso não parou a tensão, muito pelo contrário, ajudou Slosa a deixar o seu controlo desvanecer. Com um tom ríspido ordenou Leiva a segui-la e com um passo acelerado, alimentado pela cólera de Slosa, abandonaram do salão da estalagem em direcção aos aposentos de Slosa. Lá dentro, ela fechou a porta e depois virou a sua atenção e fúria para Leiva, urrando com a cara desfigurada pela fúria.

- Como te atreves a arranjar confusão com os meus hóspedes, no meu próprio estabelecimento?

Mas a expressão de Leiva, essa tinha mudado. O seu sorriso tinha desaparecido no momento em que cruzou a porta e tinha sido trocado por uma expressão sóbria e gélida.

- O que é preferível? Que eu comece a pôr cartazes espalhados pela cidade dizendo “Leiva trabalha para Slosa, dona do Dragão Vermelho”. – Cuspiu Leiva como se fosse um alívio dizer-lhe estas palavras. – E o que seria melhor? Coloca-las por baixo dos cartazes pedindo a minha captura.
- Como te atreves. – Suspirou Slosa fechando os punhos.
- Atrevo-me, sim! Porque é assim que eu trabalho e só por tu estares a pagar-me não quer dizer que tenha de ser simpática para ti, muito pelo contrário, tenho de mostrar que não temos laços nenhuns e isto de me trazeres para aqui dentro é um erro. As pessoas falam.
- Provaste o que pretendias. Agora não voltes a causar desordem na minha casa!
- Não é assim tão fácil. Esse rapaz, esse Midsat. Acho que é um dos teus.
- Como é que sabes? – Questionou Slosa surpresa com as palavras da ladra
- Não sei, mas vocês têm um cheiro característico. E este rapaz tresanda à “Mão Negra”.

Mantendo-se em silencio, Slosa deslocou-se até à janela do seu quarto. Olhou para fora, pensativa e perturbada pois se assim fosse, desconfiava das razões de Midsat para o seu aparecimento aqui. Podia ser só coincidência, mas ela não se podia dar a esse luxo.

- Não tenho a certeza. Mas podia apostar a minha vida como ele é da “Mão Negra”. – Continuou Leiva. – Em relação ao meu trabalho…
- Esquece o outro trabalho! – Interrompeu Slosa. – Isto é mais importante. Trataremos da estátua depois.
- Desculpa, mas eu fui paga para recuperar aquela estátua, não para andar a investigar um rapaz qualquer. – O sorriso voltou à cara de Leiva conforme ela continuou. - A menos que, veja alguma mudança no meu pagamento.
- E quanto te faria mudar de objectivo.
- O dobro seria um bom começo.
- Sua víbora gananciosa. – Cuspiu Slosa por entre tentes fechados.
- Uma rapariga tem de se alimentar.
- Pois bem, terás o teu pagamento. – Acordou Slosa. – E um conselho, para descobrires se ele é mesmo quem tu pensas que é…
- Procuro pela mão negra tatuada no corpo. – Cortou Leiva, deixando a sua empregadora mais uma vez surpresa. – Eu tenho as minhas andanças com criaturas da vossa espécie. Para alem do mais, já vi a tua.
- Como? – Gaguejou.

Vendo que tinha Slosa assustada a ladra limitou-se a sorrir enquanto abria a porta, quando trespassou os limites do quarto ousou dizer:

- Eu gosto de conhecer com quem trabalho ao pormenor.

-------------

A cidade vibrava com vida. Muitos voltavam aos seus trabalhos para manter essa vida acesa diariamente. Guardas patrulhavam as ruas em pequeno número, mercadores de bens essenciais já vendiam os seus produtos. O caminho que Midsat tomara para o templo tinha-o levado por um pequeno mercado, onde era vendida comida e outros produtos para as casas, onde ele se sentiu encantado com o pequeno rebuliço causado pelas mães que arrastavam os filhos de loja em loja para comprar as provisões para as suas casas, as crianças que brincavam umas com as outras e ainda as que estavam agarradas pelas mães faziam caretas tentando soltar-se do aperto das suas progenitoras para juntarem-se á brincadeira. Era um facto que este local pequeno não se comparava à magnitude do distrito mercantil, mas a sua simplicidade aquecia Midsat.
O templo erguia-se majestoso em relação aos outros edifícios. A torre do sino erguia-se sumptuosamente acima de qualquer edifício e acabava numa espiral estendida ao céu. As belas arcadas convidavam os crentes a entrarem. Os jardins em torno do santuário eram graciosos, transbordando de cor e cheiros, tratados meticulosamente pelas sacerdotisas. Em frente à entrada e por baixo das arcadas estavam vários indivíduos, muito possivelmente procurando curas para as maleitas que os afligiam. Maleitas, essas que as devotas de Arana tentavam tratar com as melhores das suas capacidades.
O interior era bastante modesto. Várias velas iluminavam o local pois a luz que passavam pelas brechas que eram usadas como janelas era insignificante para iluminar o interior. Bancos de madeira estavam alinhados desde a entrada até o altar que tinha um manto branco e bordado com padrões vermelhos por cima. E atrás do altar estava uma estátua de Arana, de joelhos e de braços abertos, olhos em direcção ao céu e duas grandes asas abertas atrás dos braços.
Não se encontravam muitas pessoas dentro da igreja, apenas o sacerdote que limpava o chão e uns poucos crentes espalhados pelos bancos. Midsat sentou-se num dos bancos e ofereceu uma prece a Arana. Tinha sido ensinado a respeitar a Deusa e assim o fazia. Não esperava que milagres acontecessem, mas o respeito por Arana não devia ser perdido.

1 comentário:

Ars Moriendi disse...

interesting... I NEED MOAR..LOATS MOAR