Another Fine Mess



A girl read my runes in the warm dressing room,

It was then that I started to think
There has to be something really worth hunting -
I reach for another strong drink.
For ten lonely years - that's my reward.

My ego and I we have faced many dangers.
Fear and self loathing have never been strangers.
Nobody knows of the depths we have been to -
Or all the fine messes we've got ourselves into.
For ten lonely years - that's my reward.


Chega o final do ano e os conflitos na minha cabeça não se restringem à sua insignificância. Há dias em que tudo parece claro, que sei o meu caminho, mas também há outros em que esse ímpeto desvanece num letárgico esquecimento.
Se há coisa que não pode acontecer, é uma queda em face destas atribulações. Nem que tenha de procurar a minha força no fim de uma garrafa, eu sei que não me vou prostrar outra vez. Já não sou o mesmo. Cresci. Agora os problemas não parecem tão significantes como outrora.
E este sorriso. Este sorriso que não sei de onde vem. Este fogo arde perante a adversidade, na forma de um esgar provocador em face da adversidade embriaga-me mais que o próprio álcool. Enche-me e dá-me coragem e força para continuar a marchar, como um enorme grito de desafio dizendo: “Deuses e criaturas que nos tecem o destino podem mandar o que quiserem, pois o meu sorriso não desvanecerá e de cabeça erguida vos enfrentarei.”

Um bom novo ano.

Madalene – Sabores

Passei a noite acordada e pela cara da Clarisse, também ela. Sentámo-nos as duas na mesa da cozinha com uma taça de cereais à frente de cada uma e um pacote de leite no centro para ser dividido. Nenhuma de nós disse uma palavra e começamos a comer muito lentamente. Foi um processo incrivelmente demorado e cada movimento pareceu demorar horas a ser concluído. Pegar na colher, leva-la à taça de cereais e o doloroso, ruidoso, insuportável e infindável mastigar dos cereais. O ruído prolongou-se até eu não poder mais. Deixei cair a colher, puxei os cabelos para trás e com a cabeça encostada à mão fiquei a olhar para a Clarisse à espera que ela me dissesse algo. O que obviamente não aconteceu e fiquei especada a olhar para ela sem nenhum outro ruído para alem do mastigar.

Madalene: Vais dizer-me algo?

Ela continuou a mastigar com um olhar perdido no nada.

Madalene: Fala comigo Clarisse! Depois do que se passou ontem não podemos estar assim.
Clarisse: E o que se passou ontem Madalene?
Talvez não tenha sido boa ideia. O grito percorreu-me a mente como uma tempestade.

Clarisse: É que a ultima coisa que me lembro, é de ser assaltada e depois aquele homem no ar a sangrar de… Era tanto sangue…

Ela está a exagerar, não era assim tanto.

Clarisse: Eu não sei o que aconteceu, mas sei que tenho medo.

De mim.

Clarisse: De ti. Desculpa Mad mas foste tu que fizeste aquilo.
Madalene: Pois fiz! E sabe-se lá o que teria acontecido se não o tivesse feito.
Clarisse: E tu por acaso sabes o que fizeste? Eu não acredito que saibas!

Agora a Clarisse tocou em algo difícil de se responder. Não sei se pelo olhar dela, a tentar aguentar as lágrimas, ou se pelo que ela disse ter sido a mais pura das verdades e também a razão porque não adormeci esta noite.
O que se passou comigo? Eu não sei explicar mas o que aconteceu ao assaltante, sei que foi provocado por mim. De alguma maneira eu fiz aquilo acontecer, sem tocar nele sufoquei-o, esmaguei-o e quem sabe até o posso ter morto, só simplesmente porque quis.

Clarisse: Eu entendo o teu silêncio Mad. Mas eu vou passar uns dias com o meu pai. Desculpa mas…
Madalene: Tens medo, já entendi.

Não trocámos mais palavras entre esse momento e a altura em que ela saiu da casa.


Independentemente do que aconteceu, eu dava graças por hoje ser sábado. Pelo que parece estou ressacada e estranhamente, algo em mim sabia que não era da bebida.
Depois de limpar a casa decidi que tinha de sair, estar fechada em casa sem a presença da Clarisse era mais arrepiante do que eu esperava, ainda por cima com os fantasmas desta noite ainda a assombrarem-me.
Sai de casa e senti um calafrio assim que os raios de sol me tocaram no corpo. Olhei para o céu apenas para ser presenteada com uma sensação de desconforto ao lembrar-me da chuva colorida de estrelas no ar antes daquela situação. De alguma forma era significante e parecia muito pouco provável que as duas fossem apenas coincidência. De certeza que estavam conectadas.
Mas é melhor tirar a minha mente disto e sair da frente da porta do prédio.
O dia estava ameno, mas conforme continuei a andar o calor começou a apossar-se do meu corpo. Foi uma boa desculpa para comer um gelado, visto que já não comia um à uma eternidade. Chocolate e amêndoa, aposto que isto é o que se come nos dias de calor lá no além. Mas assim que acabei de comer o gelado fui invadida por um frio terrível, algo mesmo extremo que até me fez tremer. A sensação estranha de frio foi passando e tudo voltou ao normal.

Sem a Clarisse passar o tempo era um pouco mais aborrecido. Acabei por deixar o tempo passar por mim com a televisão ligada e a soprar constantemente para a franja esvoaçar de um sítio para outro.
Comi os restos de o macarrão que foi feito ontem e agora ainda mais senti a falta da Clarisse, que para mal dos meus pecados, eu não consigo cozinhar para salvar a vida e até para aquecer estes restos dei um ar da minha graça ao queimar um pouco. Engoli com custo o alimento, ora frio, ora quente, ora totalmente carbonizado, enquanto os meus olhos se focavam no ecrã da televisão que repetia a mesma história de notícias macabras e pecados do homem.
A noite foi decorrendo lentamente. As notícias transformaram-se em anúncios que depois transformaram-se em novelas. E eu continuava a olhar para o ecrã, por cima do prato sujo do jantar, estática e totalmente aborrecida.
Decidi que tinha de sair. Não pensei que sentisse tanta falta da Clarisse mas depois destes dois anos a vivermos juntas, eu nem conseguia pensar direito sendo assombrada pelo facto de que ela tinha fugido.
O ar nocturno estava fresco e uma sensação de mau estar percorreu-me o corpo. Senti o meu sangue a arrefecer, veia a veia, conforme a primeira lufada de ar entrou-me no corpo. Percorri as ruas de Radiance deambulando sozinha por vários cantos que conhecia, mas eventualmente cruzei o caminho da noite anterior. Parei no beco onde a Clarisse foi assaltada. Engoli a seco assim que me aproximei e vi uma mancha distinta no chão. A cor avermelhada não deixava o caso aberto a discussões, aquilo era o resto de sangue que tinha ficado colado ao pavimento depois do que sucedeu ontem e havia um rasto distinto que seguia para dentro do beco, o que significava que muito provavelmente o homem tinha sobrevivido. Arrepiei-me, tanto de frio como de algo mais, senti-me observada e com um mau estar horripilante.
Fugi daquele sitio com o coração a saltar-me no peito e com a terrível sensação de que algo estava bastante errado comigo. Continuei sem rumo agarrada ao peito e tremendo e assim que pude meti-me dentro de um estabelecimento, não me importava se era discoteca, bar ou até um café de rua, eu só precisava de uma bebida e um sitio onde me sentar.
O ambiente era bastante escuro e vazio se uma pessoa ignorasse a confusão de luzes que piscavam, a neblina falsa, o ruído ensurdecedor da musica e a multidão que se esfregava calorosa e vivamente na pista de dança.

Barman: E o que vai tomar esta noite?

A agonia dentro de mim estava tão intensa que nem me dei ao trabalho de levantar a cabeça para responder

Madalene: Qualquer coisa com uma boa percentagem de álcool dentro.
Barman: Ontem não chegou?

O meu coração bateu mais lento. Levantei a cabeça e engoli a seco quando vi aquela cara sorridente. Estava na mesma discoteca da noite anterior, onde a Clarisse tinha magoado o pé. Senti-me que nem uma criminosa a voltar ao lugar do crime, pois inadvertidamente tinha corrido em inverso o caminho que percorremos ontem à noite.

Barman: Está tudo bem?
Madalene: Está.

Respondi num tom seco e de olhos esbugalhados tentando controlar o choque.

Barman: Não parece. Alguma coisa que queiras falar?
Madalene: Não.
Barman: Estavas mais simpática ontem.

Ele despejou-me uma bebida mas continuei um pouco perturbada. Cuidadosamente peguei na bebida e meti o copo aos lábios. Fechei os olhos e saboreei o doce aroma da bebida. Senti um ardor a percorrer-me o corpo e então abri os olhos. O rapaz estava a olhar para mim de sobrolho erguido e expressão inquisitiva mas eu mantive-me em silencio. O ardor ainda estava a percorrer-me o corpo e tinha medo de começar a tossir se abrisse a boca. Ele ainda me questionou se estava tudo bem, possivelmente devido à minha face um pouco agoniada, mas ainda demorei um pouco a responder. Finalmente limpei a garganta e numa insanidade momentânea evitei responder-lhe mas perguntei:

Madalene: Quando é que sais daqui?
Barman: O quê?
Madalene: Ouviste bem. Responde antes que mude de ideias.



Não sei realmente o que tenho na cabeça. Podia afirmar que não é meu habito levar homens que não conheço para minha casa, mas isso seria errado. Normalmente é um motel, ou nas casas deles, mas desta vez estava tão disposta a ver-me livre desta sensação que tudo valia.
Já tínhamos passado a porta da casa e estávamos aos beijos como se a nossa vida estivesse dentro da boca do outro. As mãos percorriam os corpos um do outro afagando todos os contornos dos corpos. Ao passar a mão pelo peito dele consegui sentir os seus músculos por baixo da t-shirt e a vontade de lhe sentir o corpo e a sua pele avassalou-me. Rapidamente tirei-lhe a t-shirt, lancei-o contra a cama e em seguida meti-me em cima dele. As mãos dele subiram da cintura até ao peito e nesse movimento a minha camisola voou para o chão do quarto. Rebolamos aos beijos na cama até ele estar em cima de mim e ai, com um sorriso agarrou-me nas calças e beijou-me o pescoço. Conforme os seus beijos começaram a descer pelo meu corpo, assim as minhas calças começaram a deslizar das minhas ancas. A sensação era tão boa que dei por mim a gemer suavemente, mas quando ele tinha puxado as minhas calças até aos meus pés eu cometi o grave erro de abrir os olhos. A flutuar no ar, em volta da cama, estavam as roupas que já tinham saltado dos nossos corpos, assim como o candeeiro da minha cómoda. Em pânico soltei um grito e tudo caiu no chão. O estrondo do candeeiro a partir-se em cacos misturado com o meu grito fez o rapaz dar um enorme salto para fora da cama.

Barman: O que se passou?
Madalene: eu… eu preciso de estar sozinha.
Barman: desculpa?
Madalene: Isto não dá, vais ter de sair.

Assustado o rapaz vestiu-se e saiu. Ele estava demasiado entretido, acredito que não viu nada. No entanto eu não posso negar o que se passou. Primeiro o incidente com a Clarisse, agora isto, há algo de errado comigo. Na cómoda ao lado da minha cama havia uma moldura com uma foto da minha mãe. Estendi-lhe a mão, senti um mal-estar a percorrer o meu corpo e imediatamente a moldura deslocou-se sozinha. Gelei por dentro mas mantive a posição e em poucos segundos a moldura estava na minha mão, sem qualquer outro movimento meu.

Madalene – Luzes brilhantes e um céu nocturno.

Mais uma noite tinha chegado a Radiance. Eu e a Clarisse preparávamo-nos para fugir à sombra do horário laboral e sermos envoltas pelas doces luzes da noite. Talvez esteja a ser demasiado filosófica, mas quando começo a limar as unhas a minha mente devaneia.

No outro sofá à cabeceira deste estava a Clarisse, numa posição que desafiava o conforto físico, a pintar as unhas dos pés, completamente absorvida pela sua tarefa.

Na televisão passava o noticiário das oito horas, passando a mesma historia mórbida do violador de Radiance. É claro que trata-se de um caso mediático e um perigo para a as mulheres da cidade, mas já è a sexta vez este dia que eu vejo a mesma noticia.


Madalene: Este noticiário já cansa.


A Clarisse manteve-se calada, envolta na sua pintura.


Madalene: Isto só acontece porque a policia faz pouco para o capturar. Cambada de preguiçosos. Oh, desculpa Clarisse.

Clarisse: Não faz mal amiga, eu bem sei que o meu pai é preguiçoso. Mas se te chateia, muda de canal, não temos de estar a ouvir dessas coisas.

Madalene: Bem, as minhas unhas já estão. Passa-me o verniz.

Clarisse: Ainda não acabei, dá-me só mais uns minutos.

Madalene: Se tu tivesses tanta aplicação na faculdade como a arranjar-te tiravas vinte a tudo.

Clarisse: Mas assim perdia tudo o resto que estes anos têm a oferecer.


Não podia discordar com isso. Estávamos no pico da juventude e dispostas a aproveitar todos os momentos que a vida nos lançava.


Clarisse: Achas que estamos em perigo?

Madalene: uh?

Clarisse: O meu pai diz para termos cuidado quando vamos à rua. Ele diz que esse homem é um louco e as raparigas que encontraram mortas... não as mostraram nem às famílias devido ao estado em que estavam.

Madalene: Não achas que o teu pai te anda a dizer demasiadas coisas sobre um caso policial? Se calhar só te está a tentar assustar.

Clarisse: Isso seria mesmo típico dele não seria?

A Clarisse não resistiu a rir-se e eu acompanhei-a na gargalhada. Apesar de ser um tema sério, a verdade é que o pai dela costumava exagerar as coisas para causar medo a este pequeno demónio que ele ainda pensava ser inocente.

Clarisse: Toma lá o verniz.


O noticiário acabara de apresentar outra vitima do violador. As coisas não estavam bonitas para o departamento de policia. Eventualmente enquanto eu pincelava as minhas unhas a Clarisse acabou por dar a sua opinião.


Clarisse: Isto ainda vai piorar antes de ficar melhor.

Madalene: Achas que isso vai acontecer?

Clarisse: Acredito que sim. Soa demasiado pessimista?

Madalene: Yah, nem pareces tu.


Algumas horas depois saímos de casa para nos lançarmos aos bares e discotecas. A noite encontra-se agradavelmente quente, a aragem com aromas estranhos e alguns mais doces provenientes do parque Ectos. Foi uma ideia de Clarisse procurar bares neste lado da cidade e não demorou até encontrar uma nova discoteca para onde me arrastou por um braço.


A musica estava alta e as luzes iluminavam os corpos suados na pista de dança. A fricção entre os corpos gerava uma quantidade infindável de calor humano, a dança frenética não parecia cessar sob os ritmos e ondas musicais e no meio de tudo isto eu estou no balcão parada, sem vontade nenhuma de me juntar ao frenesim musical. Suspirei desencantada olhando para a bebida que tinha na mão. Depois de me preparar tanto, tinha acabado amuada num canto. Suspirei mais uma vez ao ver a Clarisse no meio da multidão de corpos com o seu longo cabelo loiro a balançar ao ritmo da sua figura. Pelo menos ela está a divertir-se. Foi uma boa razão para sorrir.

Um pouco mais tarde, depois de já ter trocado umas palavras com a Clarisse e depois de ela ter voltado à pista de dança, o barman decidiu questionar-me sobre a minha inércia.


Barman: Desde que entraste aqui, que não saíste do balcão. Há algum problema?

Madalene: como sabes que estive este tempo todo aqui?

Barman: Já é o terceiro Sexy Devil que pedes e ainda não te vi a mexer para longe daqui.

Madalene: Com que então tens andado de olho em mim?

Barman: Só tenho é razões para não os meus olhos de ti.


Ri-me timidamente. Não acredito que isto esta a acontecer-me. Não me sinto com vontade nenhuma de entrar nestes tipo de jogos mas também não quero ficar com alternativa.


Madalene: É verdade, mas os teus olhos não são as tuas mãos e essas podiam estar ocupadas em fazer-me outra bebida.

Barman: Não só.

Madalene: Tira esses pensamentos e faz-me outro Sexy Devil.

Barman: tens a certeza? Tu sabes a quantidade de vodka que isto bem?

Madalene: Estou bem ciente. Agora fecha esses lábios e trabalha.


Isto até pode correr bem. Quem sabe até me calhe um pouco diversão mais logo, assumindo que a Clarisse tenha um forte interesse de passar a noite na casa do pai, ou passa-la acordada.

E eu própria acabei de mandar as minhas esperanças abaixo. Bom trabalho Madalane.


Barman: Mas então, porque não sais daqui? Por a tua cara assumo que seja por algo mais que o rapaz giro que te está a fazer as bebidas.

Madalene: Não sei. Desde que sai à rua que fiquei murcha.

Barman: O que estás para ai a dizer? Está uma noite boa e já olhaste para o céu?

Madalene: Sim, o céu está bonito.


Não consegui dizer mais nada, foi como se as palavras prendessem na minha garganta e a língua enrolasse. Não sabia o que mais dizer e não conseguia o fazer mais. Foi como se a minha mente se perdesse nas estrelas. Tentei tirar o nó da minha garganta com a bebida mas não funcionou. O que é que se passa comigo.

Felizmente tive a maravilhosa interrupção da Clarisse que me tirou tudo o que me poderia paralisar da cabeça.


Clarisse: Amiga, desculpa mas temos de nos ir embora. Torci o pé.

Madalene: Então apoia-te aqui. E vamos já embora.


Pus o dinheiro em cima do balcão e depois, com a Clarisse agarrada ao meu ombro fomos embora dali. Apenas com uma pequena interrupção.


Barman: Hei! Não nem sei o teu nome.

Madalene: Isso é porque eu não te o dei.


Fomos outra vez para a noite, mas agora era de volta a casa. E carregar uma miúda com mais uns 5cm que eu, ainda por cima em saltos altos e com a quantidade de vodka que eu tenho em cima não é algo fácil.

Caminhámos por um bom bocado até a Clarisse pedir para parar. Para ficar mais confortável e não forçar o pé, levei-a para sentar-se num muro.


Clarisse: Desculpa, mas o meu pé já não aguenta mais.

Madalene: Pára de pedir desculpas. Até parece que me aleijaste.

Clarisse: Ahah. E que tal ires ai a um café buscar uma água.

Madalene: É para já minha senhora.


Com uma vénia trocista. Corri para o café mais próximo e pedi uma água depois de pagar voltei imediata para o local onde tinha deixado a Clarisse mas eu não a via. Ela não podia ter ido muito longe. Procurei em redor mas nada. O meu coração já começava a querer partir as minhas costelas e saltar da caixa torácica até que ouvi um grito abafado vindo de uma viela mais obscura.

Entrei no beco e deparei-me com um homem segurando uma faca, cobrindo a boca da Clarisse com uma mão e com a outra remexia na sua mala. Não pensei e aproximei-me deles berrando.


Madalene: Hei! Larga-a!


O criminoso pôs-se rapidamente atrás da Clarisse usando-a como um escudo humano mas quando viu pela escuridão deve ter-me achado pouca resistência pois começou a rir-se.


Criminoso: Por momentos pensei que estava em problemas. Não passas de uma miúda. E que tal também passares a tua carteira e telemóvel para não termos chatices aqui com a tua amiga.


Cerrei os pulsos com raiva e cerrei os dentes. A faca estava demasiado próxima da garganta da Clarisse e não havia nada que eu pudesse fazer. Vi as lágrimas a cair pela cara da Clarisse e o meu coração ainda bateu mais. Dei um passo mas o agressor tornou o aperto mais intenso.

Mas neste instante, algo aconteceu que ninguém esperava. Luzes brilhantes cruzaram o céu. Uma chuva de estrelas de cores que desafiava a imaginação iluminaram o céu como uma língua de fogo colorida e quando cessou, a minha mente foi assolada por uma imensidade de pensamentos e foi penetrada por uma dor incrível que me forçou a ficar de joelhos. Mas de um momento para o outro a dor cessou e quando me levantei fui movida por uma mão invisível.

Ergui o meu braço em direcção ao malfeitor e semicerrei os meus dedos como se apertasse algo e nesse exacto instante todo o seu corpo ficou tenso, deixando cair a faca. Comecei a avançar em direcção a ele cerrando os meus dedos cada vez mais e vendo a sua agonia a crescer perante os meus olhos. Ergui o meu braço e ele elevou-se no ar. Vi sangue a escorrer-lhe pelo nariz e não quis parar, senti-me viva, senti que podia fazer tudo e neste momento eu iria esmagar este insecto. Apertei-o ainda mais e pareceu-me sentir o seu coração a abrandar na minha mão. Cada vez mais a batida parecia esmorecer até um suspiro.


Clarisse: Madalene, pára!


O grito da Clarisse cortou o meu transe como uma luz pela escuridão. Cai de joelhos novamente, ofegante e com a visão turva, mas não conseguindo dar luz à situação, deambulei até voltar a ter a Clarisse apoiada em mim.

Depois voltamos a andar. Abandonei aquela viela e não olhei para trás, percorremos o resto do caminho até ao apartamento em absoluto silencio e não voltamos a olhar para trás.



Não olhámos para trás…

Colector de Corações

Parte 8

A chuva caía como um dilúvio inundando as ruas de Lazindur. A água escorria pelas ruas em direcção às sarjetas e aos esgotos com um fervor demoníaco. Não havia viva alma das ruas para alem da figura encapuçada de Leiva que cruzava as ruas com uma velocidade tremenda como um fantasma, uma sombra que vagueava pelas artérias da cidade fluindo com os líquidos que por elas passavam.
Por fim ela chegou ao seu destino. Era uma casa que, nos pequenos detalhes, destacava-se do resto. Tinha dois andares, os parapeitos das janelas tinham elaborados detalhes cravados na pedra e o jardim tinha flores exóticas em abundância. Não era uma simples casa, era uma vila de algum nobre.
Entrar na casa não foi difícil, pois Leiva tinha subornado um dos criados para deixa-la entrar pela porta das traseiras, mas não dar nas vistas tornou-se um pouco complicado. Apesar do temporal enfeitar os cantos da casa com sombras, também tinha mantido os serventes e guardas dentro de portas, portanto todo o cuidado era pouco. Com isso em mente, Leiva colou-se às sombras e abraçou as paredes no mais profundo silencio tentando sondar presenças nos seus arredores. Alguns aposentos requeriam mais cuidado devido a patrulha de guardas ou um servente encarregue de uma tarefa, outros ainda tiveram de ser completamente ignorados devido a sentinelas permanentes e Leiva necessitou de encontrar outra rota até ao seu objectivo.
Encontrando-se no segundo andar ela conseguiu pôr os olhos na sua meta. Os aposentos do nobre encontravam-se no fundo de um corredor com dois guardas de sentinela. Algo que Leiva não conseguiria ultrapassar sem alertar a casa da sua presença. Perante este obstáculo a Ladra decidiu fazer algo mais arriscado. Com passos silenciosos ela aproveitou a ligeira distracção dos guardas para fazer uma pequena passagem pelo corredor e entrar num dos compartimentos a ele adjacentes. Ao fechar a porta Leiva deparou-se com uma figura prostrada na cama e o seu coração acelerou até se aperceber que dormia profundamente. Aliviada, Leiva agiu em silencio e rapidamente, pois nesta altura alguém já suspeitaria do misterioso trilho de água deixado por ela ao avançar pela casa, dirigindo-se à janela. O temporal já tinha abrandado e agora apenas caia uma chuva miúda, como se a natureza tivesse decidido facilitar a próxima proeza. Com cuidado Leiva abriu a janela e saltou para o parapeito, fechando-a do outro lado. Dotada de uma destreza surpreendente usou as saliências e outros parapeitos para deslocar-se de quarto em quarto pela parede exterior da casa, por fim conseguindo encontrar-se em frente aos aposentos no nobre. Abrir a janela do exterior não se apresentou obstáculo e dentro de segundos Leiva já se encontrava dentro do quarto com o seu objectivo à mão de semear.
Havia uma pequena caixa na mesa de cabeceira fechada a cadeado, algo que não passava de nada mais que um véu nas mãos de Leiva, mas antes que as suas mãos pudessem forçar a fechadura, ouviu vozes a levantarem-se do outro lado da porta e correu a se esconder por detrás dos cortinados. De lá, ela conseguiu ouvir o ranger da porta a abrir-se e os passos pesados de dois homens a entrarem no quarto. Pelas vozes pareciam ser de idades muito diferentes e pela conversa mostravam ser pai e filho.

- Eu discordo plenamente destas situação meu pai. – Criticou o mais novo.
- Já ouvi as tuas objecções Clariese e a minha resposta continua a mesma. Estamos aqui para ajudar uma velha amiga e isso é mais importante que as tuas andanças na corte.
- Mas eu encontro-me a cortejar a menina Solena e o pai sabe quantos pretendentes ela tem. Se desapareço durante um dia cairão todos em cima dela que nem aves de rapina.
- Basta Clariese! – Gritou o pai enfurecido. – Nós vamos manter-nos aqui até o nosso trabalho estar completo. Eu não estou aqui para te satisfazer os caprichos, portanto vais parar com este assunto e acatar as minhas ordens! Estamos entendidos?
- Sim senhor. – Murmurou o filho num tom resignado.
- Agora vai. Prepara os criados para a viagem, pois partimos mal este tempo passe. E pelos vistos não vai demorar muito.

Antes do seu filho abandonar o quarto o homem deslocou-se à janela na esperança de encontrar o céu azul rasgando as nuvens negras mas ao afastar os cortinados deparou-se com um olhar gélido e um sorriso sinistro a enfeitar a pele branca da Leiva. Antes que alguém tivesse tempo de livrar-se do efeito do choque pensar em reagir, Leiva usou uma pequena moca de madeira que trazia sempre consigo para atacar o mais velho, que com uma única pancada na cabeça caiu no chão sem sentidos. De seguida o jovem desembainhou a sua espada e chamou pelos guardas. Com um grito de fúria, lançou-se a Leiva com um ataque desajeitado, que Leiva conseguiu desviar-se sem esforço. Aproveitando o desequilibro do rapaz, Leiva agarrou-lhe o braço e torceu-o atrás das costas. Quando os guardas entraram Leiva aplicou um pontapé forte nas costas do jovem, lançando-o contra os guardas fazendo-os perder o equilíbrio tentando aparar o jovem. Agindo velozmente, lançou-se por cima da cama e com a caixa na mão voltou para perto da janela. Os guardas já se tinham reposto e avançavam contra ela esbaforidos com espadas em riste enquanto que, esfregando as costas, o rapaz gritava ordens. O sorriso na cara de Leiva refez-se quando os dois guardas estavam mesmo em cima dela e enquanto delicadamente e sem levantar suspeitas retirava, uma esfera de um pequeno saco que tinha à cintura. Quando estavam perto o suficiente Leiva lançou a esfera ao chão criando uma grande explosão de fumo e de luz que ofuscou os guardas. Aproveitando-se da situação que tinha criado, Leiva lançou-se destemidamente da janela em queda livre acabando por aterrar no chão como se fosse uma gata. Apesar dos seus músculos e ossos pulsarem de dor no momento do impacto ela não se demoveu e começou a fuga por as ruas ainda ensopadas da chuva, mas que já continuam algumas almas que desafiavam o temporal que ainda cobria os céus ameaçando começar uma outra vez. Fugiu em direcção às vielas e becos que tão bem conhecia.
Deixou para trás uma vila em barafunda onde ordens eram lançadas para o ar e os seus guardas tentavam impor ordem e algum sentido no que se tinha passado. Não demorou muito até a guarda da cidade intervir a fornecer o seu auxilio.
O líder do pelotão que oferecia a sua assistência era alto de cabelo acobreado e expressão pesada. O nobre rapidamente passou a dar ordens e seguiu a identificar rapidamente a ladra por um dos cartazes que se encontravam fixos nas casas, o que
instigou ainda mais a motivação dos homens, pois viam-se envolvidos na captura da
princesa ladra.
Em poucos minutos, patrulhas faziam buscas intensivas aos arredores da mansão em busca da ladra, enquanto que outros pelotões penetravam na cidade por ruas menos usadas tentando descobrir os retiros ocultos da princesa.
No entanto, a ladra escondia-se em plena vista. Numa tenda no mercado sob a protecção de um dos seus cúmplices, a ladra forçava a fechadura da caixa.

- E o que é isso? – Questionou o homem que observava Leiva. Alto e de pele escura, com o cabelo completamente rapado e uma face enigmática.
- O meu trabalho. – Respondeu Leiva sem tirar os olhos da fechadura. – Agora volta para a tua loja, deixa os adultos trabalhar.

Mas homem não se demoveu e continuou a observar Leiva no seu “trabalho”.
Finalmente a fechadura cedeu à intrusão da ladra revelando seu conteúdo. Um rico tecido de seda enrolava o prémio pelo qual Leiva ansiava. Era uma estátua de Arana feita em mármore, igual a muitas outras espalhadas pelas casas dos habitantes na cidade. A estátua era tão banal que fez Leiva torcer o nariz, coçando a cabeça, pensativa.

- Mas o que vem a ser isto? – Questionou-se ela, ignorante que ainda era observada.
- É uma estátua de Arana. Eu pensei que para uma grande ladra tu saberias o que isso é. – Troçou o homem. – É bom ver onde tu perdes o teu trabalho, eu vendo pelo menos uma estátua dessas por dia. Podias simplesmente ter-me pedido que eu dava-te uma.

Com um movimento brusco, Leiva lançou a estátua ao seu sócio de negócios mais obscuros e ele agarrou-a com facilidade com uma mão, mas ao segura-la houve algo que lhe chamou à atenção. Sob o olhar inquisitivo da ladra, o homem avaliou o peso da estátua e perscrutou os seus detalhes com os olhos e dedos à procura de algo fora do normal. Sem aviso deixou cair a estátua. A Leiva deu um salto, soltando um pequeno grito, ao aperceber-se do intuito do seu colega, mas nada conseguiu fazer em relação a isso. A estátua despedaçou-se no chão perante o olhar estupefacto da ladra. Ela deslocou-se rapidamente para perto do homem com violência no olhar, mas acabou por parar ao vê-lo agachar-se e a remexer com os seus dedos grossos pelos cacos. No meio dos cacos de mármore algo saltou à vista. Uma jóia branca, perfeitamente redonda, que parecia ter formas vaporosas presas no seu interior. Quando a ladra tentou pegar na jóia, o olhar reprovador do eu amigo fê-la quedar-se. Depois, com um pedaço de cabedal na mão ele agarrou na pedra e ergueu-a até à linha do olhar. Parecia uma pequena estrela de almas confinadas a um núcleo de energia e envolvidos numa superfície transparente.

- Isto é uma jóia de demónios. – Cuspiu o homem olhando para Leiva que observava a jóia com um grande sorriso nos lábios. – Esta jóia suga a essência de quem lhe tocar. Esta é pura e as sombras que rodopiam em torno dela mostram que está faminta.
- Não me interessa se amaldiçoará a minha família toda, aposto a minha sorte com que era isto que eu realmente procurava.
- Uma aposta pesada Leiva, eu não proferiria essas palavras se fosse a ti. A tua sorte já te salvou tanta vez.
- Mas meu amigo, eu tenho a certeza que é isto. – Assegurou a ladra com o seu olhar obcecado pela jóia. – Se isto suga-me a essência se eu tocar, guarda-a de uma maneira que eu a possa transportar. Esta noite vou entrega-la.

Quando o amigo de Leiva, preparava a jóia para ser transportada a sua ajudante aproximou-se deles, nervosa e ofegante.

- Garto, Leiva, os guardas aproximam-se!
- Despacha-te então e eu saio daqui o mais rápido possível. Não quero ver o meu contacto profissional implicado nos meus problemas.

Com a ajuda da rapariga, envolveram a jóia numa camada de seda e noutra de cabedal, voltaram a colocar na caixa de onde tinha saído e o mercador fechou-a com um dos seus cadeados. Depois de entregar a chave a Leiva, ela lançou-se outra vez para as ruas de Lazindur, percorrendo alguns dos seus caminhos na direcção oposta, refazendo os seus passos na esperança de confundir as buscas. Depois disso precisaria de um sitio onde se esconder, mudar de roupa. Sítios desses para ela não faltavam na cidade.

Colector de Corações

Parte 7


A manhã foi apresentada ao som pesado de um trovão que rufou pelos céus a cima de Lazindur, anunciando a chegada de uma tempestade. As nuvens carregadas passavam para alem do horizonte e ameaçavam descarregar o seu fardo sobre a capital do império.

O outro trovão sou acima das cabeças dos habitantes da cidade, receosos que a chuva estragasse um dia de comercio. Leiva despertou ao som desse trovão de olhos arregalados olhando para o tecto do quarto, sem mostrar um único sinal de sonolência. Rapidamente levantou-se e começou a vestir o pouco que tirara do corpo para dormir. Todos os movimentos do seu corpo enquanto se vestia eram uma distracção aceitável para meter a mente nublada a modos de não estragar o seu momento a sós nesta manhã.

Abrindo a janela viu as primeiras gotas de chuva a chegarem ao chão e de seguida um dilúvio lançou-se sob as terras dos homens. A chuva caía ruidosa e imponente sobre telhados, ruas e pessoas, lavando toda a cidade. As ruas enchiam-se de água e lama que nem afluentes de um rio pantanoso. As pessoas corriam ao abrigo das suas casas, de templos e tabernas mais próximas, receosas do dilúvio.

Quando Leiva deixou o quarto para trás e desceu para o andar inferior, deparou-se com uma enchente de gentalha que se amontoava à porta e janelas da estalagem, observando com espanto a chuva que caia sobre eles e os céus que se tinham aberto para essa demonstração de poder.

Atrás do balcão só se encontrava Fasala, enquanto que as suas irmãs Tella e Rasi serviam os clientes. Das quatro irmãs, Fasala era a que se assemelhava mais a Slosa. Era mais alta que Slosa e tinha uma presença forte, os seus olhos tinham um tom azul celestial como se os olhos fosse o próprio céu que decidira observar os mortais. O cabelo era curto como um corte masculino mas tinha exactamente a mesma tonalidade do de Slosa. Ela era a melhor candidata a ser a verdadeira filha de Slosa, mas não havia certezas, mesmo em toda a informação que Leiva tinha conseguido descobrir das quatro filhas, que por si não era muita, não havia nenhuma prova que uma das quatro fosse realmente do sangue da Madame Slosa. Não haviam muita pessoas que confiassem em Leiva e o sentimento era recíproco, mas desde cedo que existia uma animosidade inexplicável entre ela e Fasala.

Quando se aproximou do balcão, Leiva manteve-se em silencio com os seus olhos cravados nos de Fasala, ao que esta lhe retribuiu sem um único sinal do medo que tomava as suas outras irmãs na presença da ladra. Por breves momentos, nem uma palavra foi proferida, ou um gesto feito, as duas limitaram-se a trocar um olhar frio e expressões imutáveis, até que Fasala com um ar de desdém e desagradada pegou num pequeno farnel embrulhado num pano e pô-lo em cima do balcão. Sem demoras, Leiva pegou no que seria o seu pequeno-almoço e sorridente acenou com a mesma mão troçando:


- Comporta-te.


Leiva virou as costas, meteu o capuz e saiu do Dragão Vermelho para defrontar o temporal. Enquanto isso, Fasala ardia de fúria vendo a ladra a sair pela porta. Não suportava a intromissão desta degenera na vida da sua família e para piorar as coisas o facto de que a sua mãe a ajudava, corroía-lhe as entranhas com fúria. Não imparcial à situação, Tella aproximou-se da sua irmã com uma feição terna e dirigiu-lhe a palavra:


- Sempre que vocês falam, ficas com a mesma cara.

- Não tens alguém a quem servir? – Perguntou Fasala amargamente.


Tella silenciou-se e torceu o nariz não retirando os olhos da sua irmã, que eventualmente cedeu à pressão silenciosa da sua pequena irmã.


- Desculpa. A culpa não é tua.

- Eu sei que não é! – Ripostou Tella poisando a bandeja que carregava e levando as mãos à cintura. - De qualquer maneira não devias estar assim, só lhe dás o que ela quer.

- Eu não lhe estou a dar nada! Eu ainda não lhe dei nada! – Asseverou Fasala exaltando-se um pouco mais. – Tu espera, ela não perde pela demora.

- Tu por acaso não estás a pensar em meter-te com a Leiva pois não?

- Não directamente.

- Fasala, tu não penses em… - Começou Tella tentando repreender a sua irmã acabando por ser interrompida.

- Não estão com muito trabalho pois não? – Perguntou Fasala, mas sem dar tempo para a sua irmã responder continuou. – Toma conta do balcão por mim eu tenho de ir falar com a mãe.


Sem demora, depois de acabar a sua frase, Fasala saiu pelo corredor em direcção aos seus aposentos. A sua casa e a estalagem eram adjacentes uma à outra com um corredor conectando ambas para fácil acesso. Após trespassar esse corredor Fasala parou à porta do quarto da sua mãe e bateu. Slosa usava muito tempo na manhã para se preparar para o dia e era algo que as três outras filhas respeitavam, mas nunca Fasala e esta seria mais uma altura em que o seu ímpeto iria colidir com a vontade da sua mãe.


- Podes entrar Fasala. – Concedeu Slosa logo em seguida ao ouvir

- Como sabia que era eu? – Perguntou a sua filha ao entrar lentamente no quarto.

- És sempre tu, as tuas irmãs podem esperar e falar comigo depois de eu estar pronta. Mas tu, não respeitas nada que esteja no caminho do teu ímpeto.

A sua filha manteve-se calada com um sorriso na cara.

- Mas diz-me. O que te trás aqui. – Questionou Slosa continuando a pentear o cabelo à frente do espelho.

- É Leiva. – Disse Fasala tentando meter a pose emproada. - A presença dela aqui tem sido um pouco influente no Dragão e a senhora não nos fala sobre o que isso significa.

- Ela está a fazer um pequeno trabalho para mim, nada que precises de te preocupar.

- Nada? – Fasala não era boa a manter a compostura e este era outro momento em que ela cedia aos seus impulsos. - Uma ladra procurada pela guarda, talvez até uma assassina, anda a trabalhar para si, anda a esconder-se na nossa estalagem. É mesmo isso que quer?

- Tu não entendes Fasala e tu não poderia entender, são coisas que aconteceram há muito tempo.

- Lá está outra vez o passado obscuro! – Barafustou furiosa com a intriga da situação. – Será assim tão difícil de falar disso?

- Não Falasa, não é algo propriamente fácil de falar. Nem saberia onde começar.

Fasala aproximou-se da sua mãe e sentou-se na bancada onde pousava o espelho.

- Eu tenho tempo minha mãe.

Slosa suspirou e deixou pender a cabeça derrotada. Sabia que eventualmente teria de dizer a verdade às suas filhas mas temia esse momento como a sombra da morte. Agora confrontada com ele, sentia um ligeiro alivio ao confessar-se apenas a Falasa.


À treze anos atrás eu estava longe de ser a pessoa que sou hoje. O meu trabalho era menos honroso mas incrivelmente requisitado. Era interessante ver que, as pessoas importantes que nos amaldiçoavam a qualquer oportunidade para serem bem vistos eram as que requisitavam os nossos serviços mais que ninguém.”


Slosa baixou o seu vestido deixando as costas desnudas e Falasa observou com surpresa o a imagem que estava pintada nas suas costas. O contorno a preto de uma mão como se alguém suplicasse ou estivesse desesperado para se manter agarrado à vida e usasse Slosa como o seu amparo.


Esse é o símbolo da Ordem da Mão Negra, e durante anos, também foi o meu. Matar, não é só acabar uma vida. Matar é ver o medo da pessoa, a tristeza, o sentimento de traição e o sofrimento. Matar é carregar mais um fantasma para toda a vida, é sentir o sangue a escorrer nas nossas mãos após a faca estar enterrada na garganta. É ouvir o ultimo sopro de vida após o veneno ter tido efeito. E nem todos estão prontos para isso.

Ninguém, está pronto para isso, mas todos os querem fazer. Por mesquinhes, ganância, medo, vingança. Razões essas não faltam. E isso foi o meu ganha pão durante a minha infância. Mas houve uma fatídica noite em que o meu trabalho levou-me alguém para alem da importância de todos os nobres mesquinhos para quem eu já tinha trabalhado. Uma pessoa de imensa importância, cujo o trabalho era simples: eliminar uma criatura. Mas quando vi essa criatura… era uma criança, apenas uma criança, não teria mais de dois anos. Eu não a consegui matar, depois de assassinar todo o tipo de gente eu não consegui matar uma criança, no inicio de vida. E então fugi. Abandonei tudo o que conhecia e deixei para trás tudo o que acreditei por aquela criança e até agora não tive uma migalha de arrependimento. Abri o dragão vermelho, vocês entraram na minha vida e nada foi como antes. Somos felizes não é verdade?”


- É verdade mãe, somos. – Respondeu Fasala, atónita com a revelação da sua progenitora. – Mas onde é que isto liga com a ladra.

- O que me fez abandonar a minha vida está a acontecer outra vez e estou a usar a sua ajuda para evitar que desgraça suceda.

- Então...


Fasala tentou proferir outra palavra mas a voz escapou-lhe da garganta, não conseguia, nem queria acreditar na historia que lhe tinha sido contada. Os seus olhos lutavam contra as lágrimas que se avizinhavam e o seu corpo cedia ao terror, tremendo compulsivamente.

- Não te apoquentes filha. – Confortou Slosa levantando-se e estendendo as mãos à sua filha. – Isto irá acabar, não precisaremos de viver em terror.


Ela tentou aproximar-se da sua filha nem que fosse para uma carícia, mas Fasala afastou-se bruscamente e virou-lhe costas. Fugiu para o seu quarto, lançou-se para a cama e meteu a cabeça entre as pernas, tentando absorver a historia da sua mãe. Se fosse verdade, significaria que uma das suas irmãs seria o alvo de sua mãe e tanto Tella como Delfi tinham as idades apropriadas para serem essa criança, e se tudo acontecia outra vez como Slosa tinha previsto, significaria que as suas irmãs estariam em perigo?

Colector de Corações

Parte 6

Encontravam-se a meio da tarde e as raparigas movimentavam-se atarefadas de um lado para o outro, carregando pratos e limpando o chão e mesas. Com os cabelos presos para não lhe estorvarem a vista e uma pena molhada em tinta numa mão, Slosa ia escrevendo, pausadamente, num papel que tinha em cima do balcão. A filha de Slosa que tinha falado com Midsat fez-lhe um pequeno cumprimento com a mão e baixou a cabeça. Midsat apenas respondeu-lhe com um sorriso, dirigindo-se até Slosa.. Vendo-o ela pousou a pena e com o seu sorriso passivo fez uma vénia a Midsat:

- Bem vindo Midsat. Lamento a confusão desta manhã. Aquela rapariga não se sabe comportar. Já não é a primeira vez que faz algo assim.
- Não precisa de se desculpar. – Respondeu-lhe Midsat um tanto cordialmente. – A minha reacção não foi louvável. Fervi em pouca água e sou eu quem precisa de se desculpar.

Slosa observou Midsat sorridentemente e estendeu-lhe os braços da mesma maneira que cumprimentou Lainos. Midsat hesitou, mas prontamente imitou o mercador e estendeu os braços juntando as suas mãos com as de Slosa, que sorrindo apertou as mãos de Midsat e continuou:

- A Leiva é insuportável, arrogante e impulsiva. Mas não posso negar-lhe entrada.
- Porque não? Se ela é prejudicial para o negocio não vejo razão para a deixar entrar.
- Ela não é prejudicial, a tua presença aqui confirma que não é por aquela rapariga que os meus clientes deixam de . – Continuou Slosa deixando o cumprimento peculiar. – E quando eu era mais nova a minha vida, como ela, também estava longe de assentar.

As suas filhas foram parando o seu trabalho ao ouvir as palavras a fluir da boca de Slosa.

- Algo aconteceu. – Continuou desviando o olhar de volta para o pergaminho e pegando na pena. – Algo fez-me mudar. E como eu mudei, ela também pode mudar, não há razão de lhe virar as costas.

Reparando na atenção dada à sua conversa pelas filhas, Slosa respirou fundo e de olhos fechados sorriu dizendo:

- Mas isso é uma historia para outra altura. E que faz aqui Midsat? Nesta altura não costumamos ter clientes e aproveitamos para limpar um pouco o Dragão e organizar as contas. Não estamos prontas para servir.
- Nada disso Slosa, nem precisa de se preocupar. Apenas esperava encontrar Lainos aqui. – Respondeu Midsat. – Procuro umas ervas e pensei que ele poderia ajudar-me.
- Se o queres encontrar terás mais sorte à noite pois ele estará aqui de certeza. – Ponderando um pouco, Slosa molhou a ponta da pena na tinta e pronta a escrever mais uma linha voltou a falar. – Eu estou a escrever a lista de mantimentos para amanhã uma delas ir comprar. Se quiseres podes dizer-me o que procuras e elas depois trazem.

Pegando na folha entregue por Elizia a Midsat, Slosa arregalou os olhos ao conjunto de ervas necessárias. Fitou os nomes num silencio desconfortante. Apreensiva mordeu o lábio inferior enquanto esticou o pequeno papel com as duas mãos.

- Está tudo bem? – Interrogou Midsat confrontado com o mau estar de Slosa.
- Nada. – Tentou assegurar Slosa mas deixando a sua voz estremecer. Segundos bastaram para Slosa recompor o seu controlo e a expressão de assombro foi rapidamente trocada por um caloroso sorriso. – Não foi nada, mas agradeço a preocupação. Ora bem, não será problema, amanhã uma das minhas meninas trará isto. Por volta da hora do almoço poderás vir buscar.
- Tem a minha gratidão Slosa.

O tempo passou calmamente, trazendo a afluência de clientes da noite passada. A comida foi sendo servida e a bebida começou a fluir dos jarros e a verter dos copos para dentro das gargantas. O ambiente festivo foi-se espalhando e com a chegada de trovadores a musica inundou os ouvidos de todos presentes. Slosa e as suas filhas foram se ocupando a servir os clientes e chegando a uma altura na noite já estavam inundadas sob trabalho. As luzes, perfumes e cores transformavam aquela pequena estalagem num local magico e cheio de vida, tornando difícil de imaginar o local e transformando o Dragão Vermelho num espaço magico. E como habitualmente, os mesmos mercenários estavam espalhados pelo estabelecimento com olhos atentos a quem causasse alguma agitação.
A noite ainda não tinha espalhado completamente o seu manto estrelado sobre o céu quando Lainos entrou pela porta do Dragão. Prontamente cumprimentou Slosa com a sua maneira peculiar e em seguida cumprimentou Midsat. Tomou um jantar leve acompanhado por Midsat que não resistiu em meter conversa em relação às ervas.

- Podes dizer-me para que precisas destas ervas? – Questionou Lainos depois de observar o papel.
- Julgo que não estou em liberdade de revelar. Mesmo que deva admitir que eu próprio não sei. – Retorquiu Midsat tomando um trago de vinho. – O que me pode dizer em relação a essas ervas?
- Bebida de bruxas. São ingredientes poderosos e não há muitos sítios onde se possa encontrar. – Contou Lainos esfregando a rala barba. - Aqui na cidade também são raros mas se souberes onde procurar não deve ser muito difícil.
- O que quer dizer com bebida de bruxas? Nunca ouvi essa expressão.
- Como a expressão indica, são usados por bruxas para poções. – Explicou Lainos.
- Sim. Dois destes são usados em bastantes poções mas o terceiro não consigo identificar o uso.
- Não sabes mesmo para que precisas? – Interrogou Lainos, recebendo apenas uma afirmação negativa. - Pois bem. Isto é uma raiz usada apenas para as poções mais fortes e já ouvi rumores que também è usada para fazer algo mais sombrio.
- Magia negra? – Questionou Midsat ficando estático ao aperceber-se das implicações que aquela pequena lista poderia ter.
- Exactamente meu rapaz. Mas também pode ser nada, pode ser outro tipo de mistura.

Midsat relembrou o aspecto do covil da condessa. Apesar de ser semelhante a um antro de um feiticeiro, não possuía aspecto de ser utilizada magia negra. Não havia ossos de animais ou até de humanos, não havia símbolos negros ou altares sombrios, tudo aparentava que era só um local para a pratica de magias simples, no entanto a duvida tinha sido implementada e por agora iria persistir.
A noite foi acabando pausadamente, com os clientes a abandonarem a estalagem. A musica cessou e os pedidos de bebida foram findando. Os únicos clientes que se mantiveram foram aqueles que as camas para a noite seriam aquelas daquele estabelecimento.
Após o serão passado com Lainos, Midsat apercebeu-se que ao acompanhar o mercador na bebida tinha passado o seu limite de álcool. A sua visão estava ligeiramente turva e os seus membros estavam um pouco dormentes. Tentando dissimular o seu estado, Midsat manteve-se no seu lugar até todos abandonarem o recinto. Quando tentou levantar-se cambaleou e voltou a cair no banco, soltando varias rizadas a Slosa e às suas filhas. Tella, a mais nova das quatro, rapidamente foi ao auxilio de Midsat por entre pequenos risos.

- Nunca me foi avisado o quanto Lainos bebia. – Contestou Midsat, sendo cego pelo manto de cabelo dourado quando Tella o ajudou a levantar-se.

Sendo pequena em estatura, Tella teve algumas dificuldades em carregar Midsat e as suas irmãs não a conseguiam acudir pois estavam ocupadas com mãos cheias de pratos e copos. No entanto algo aliviou a pressão que Midsat fazia em Tella. Com o outro braço sobre os seus ombros e a face ocultada por o capuz, a princesa dos ladrões ajudava Tella a carregar Midsat. Nenhuma das raparigas presentes falou, mas era visível a apreensão nas suas caras, especialmente aquelas que tinham presenciado os acontecimentos desta mesma manhã. As duas raparigas carregaram-no até ao quarto e depois de Tella abrir a porta onde Leiva a dispensou. Relutante, Tella abandonou-os e Leiva levou Midsat para dentro do quarto. Lá dentro ela lançou-o para cima da cama e sentando-se na ponta tirando-lhe as botas.

- Nunca esperei que ficasses tão mal só por o nosso primeiro encontro não ter corrido tão bem. – Troçou Leiva acabando de tirar a primeira bota.
- O que é que estás tu aqui a fazer? – Questionou Midsat de olhos fechados sem conseguir mexer os seus membros.
- Normalmente pensaria que a resposta certa seria que vinha roubar tudo o que tens de valioso, mas como já vi que o que tens de valioso é quase inexistente e como possivelmente não te lembrarás de nada amanhã. Vim pedir-te desculpa.
- Tu nem me conheces e estás a pedir-me desculpa? – Disse Midsat, soltando uma grande gargalhada de seguida. – Ainda por cima alguém com a tua reputação?
- Não se é a melhor ladra de Lazindur só a fazer inimigos. – Respondeu Leiva retirando a segunda bota de Midsat. – E também, eu fico nervosa quando conheço outras pessoas.

Ambos se riram enquanto Leiva acabava por tirar o cinto e o pequeno arsenal de facas de Midsat.

- Porque estás a fazer isto? – Perguntou finalmente Midast quase prestes a render-se ao sono.
- Porque eu sei o que é dormir com a cabeça turva pelo álcool e pedaços de cabedal colados ao corpo. – Contrapôs Leiva sorridentemente e levantando-se da cama.

Ela afastou-se até à porta e antes de abandonar o quarto ainda acabou por dirigir a palavra a Midsat uma ultima vez:

- Depois podemos voltar a falar. Se te lembrares de alguma coisa.

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Peço desculpas pelo atraso de uma semana mas para compensar tentarei publicar outra parte desta sexta para sábado.

Colector de Corações


Parte 5


Com o seu objectivo definido Midsat abandonou o recanto da condessa. Abandonou o palácio acompanhado por uma aia que esperava por ele, substituindo a menina Delena e escoltado por Tarne abandonou o terreno dos Revelette.

O caminho de volta até aos arredores de Lazindur foi sem incidentes, para alem da fome que começava a apertar no estômago. O caminho até ao palácio tinha sido longo e a viagem de volta tinha-se mostrado igualmente extensiva, porque quando Midsat conseguiu avistar as muralhas da cidade a posição do sol já se afastara do meio dia. Mas ainda houve algo mais que o deteve.

Ao passar pelas casas da plebe a atenção de Midsat foi capturada por algo que acontecia à distancia: um grupo de seis homens intimidavam um família. Aquele que parecia ser o líder agarrava uma jovem rapariga pelos cabelos enquanto gritava para outros dois que pareciam ser os pais da rapariga. E ainda longe da percepção destes, escondidos por entre as casas, cercas e outros objectos, homens vestidos com as cores de Lazindur avançavam lentamente com espadas desembainhadas em direcção aos outros.

Vendo o que acontecia, Midsat abrandou o cavalo, esperou não ter sido visto e continuou a observar. Os homens da cidade quedaram-se nas esquinas e cantos observando a situação que se desenrolava enquanto que o líder dos bandidos continuava a sua berraria. A rapariga nas suas mãos chorava vigorosamente, enquanto que aqueles que aparentavam ser seus pais encontravam-se de joelhos, com os braços erguidos, clamando por clemência. E nesse instante, como se as suas preces fossem ouvidas, um momento fulcral das suas vidas desenrolou-se aos olhos de Midsat, quando o chefe dos bandidos lançou a rapariga aos seus pés. Nesse preciso instante, um dos soldados que observava a situação levou uma pequena flauta aos lábios e fez soar uma nota aguda. Com esse sinal, todos os soldados saltaram dos seus esconderijos e lançaram-se sobre os bandidos. A maioria nem tiveram tempo de desembainhar as suas armas ante o aço dos sues agressores. Apenas dois ofereceram resistência. Um deles tombou rapidamente mas o outro pegou na rapariga e usou-a como refém. Perante isto, Midsat atiçou o cavalo e lançou-se em direcção do evento. Com um movimento rápido e preciso, lançou a sua navalha contra o ladrão, que estando de costas nem se apercebeu da aproximação rápida de Midsat antes que fosse tarde demais, e com o grito de horror da refém ao ter a sua face salpicada com sangue, o corpo do seu agressor caiu sem vida com uma navalha cravada na garganta.

Todos suspiraram de alivio quando tudo acabou. Com os agressores tombados os pais correram a abraçar a sua filha. Os soldados sorriram e congratularam-se, limpando o sangue das suas armas. O mesmo homem que tinha ordenado o pequeno ataque distribuiu ordens aos seus soldados. Alguns dos seus homens começaram a carregar os cadáveres, enquanto que outros foram falar com a família e o seu líder dirigiu-se até Midsat. O sol batia-lhe na face e o seu aspecto pareceu mudar, os cabelos compridos castanhos pareceram avivar em tons cobre, os olhos escuros iluminaram-se num brilhante verde e a sua pele pareceu ganhar outro tom com os raios de sol. Ele estendeu a mão coberta no metal da armadura a Midsat.


- Isso foi um bom arremesso. Ao meu nome é Urv e de minha parte e de parte dos meus rapazes, agradecemos-te.

- O meu nome é Midsat. – Apresentou-se, de seguida desmontando do seu cavalo. – O que se passou aqui?

- O quê? Não sabes? É um grupo de bandidos que anda a causar distúrbios por estas zonas. Estes aqui estavam a ser extorquidos dos seus bens por “protecção”, como eles o diziam.

- Pelo que pareceu eles não estavam a exercer o seu poder da forma certa.


O Urv gargalhou, não num tom jocoso mas de facto agradado pela opinião de Midsat.


- Não. de facto aquela não era a forma certa de oferecer protecção. – Respondeu risonho. – Mas ai está o problema. O pagamento é para protecção contra eles próprios e mesmo se forem pagos, não se interessam minimamente pela segurança destas pessoas. Até acho estranho como ainda não houveram nenhuns saques.

- Não? Então o que era isto? – Interrogou Midsat observando o comportamento dos que o rodeavam.


Havia pessoas começando a juntar-se para ver o que tinha sucedido naquele local. Enquanto isso, alguns dos soldados de Urv tentavam dispersa-los.

Por uns Urv acompanhou-o a perscrutar o que os rodeava antes de lhe responder:


- Bem, seria uma explicação longa e chata. E não acredito que te encontres muito interessado em ouvir.

- Não é bem assim. Eu acabei de me meter em algo e gostaria de conhecer o território.

- Conhecer o território? – Urv gargalhou outra vez e depois deu um pequeno encontrão em Midsat. – Eu gosto de ti. Ora bem, fazemos assim, a tua intervenção agora ajudou-nos, portanto eu e os meus rapazes vamos pagar-te o almoço.

- Não. Não posso aceitar tal coisa por tão pouco feito.

- Tão pouco? Tu acertaste com uma navalha no pescoço daquele bandido. Ele caiu morto sem sequer pestanejar. Foi um golpe muito bom e até deves ter salvo a vida daquela rapariga. – Discursou Urv sem tirar os olhos dos de Midsat. Em seguida gritou para o seu grupo. – Rapazes, que dizem a pagarmos o almoço a este homem?


Houve várias respostas afirmativas e algumas zombarias em relação à proeza de arremesso de um membro do grupo. Foi assim que Midsat se viu jurado a acompanhar este grupo de soldados numa refeição.

Depois de enterrarem os mortos e ajudarem a família a recompor-se dirigiram-se para a zona norte de Lazindur, para uma taberna de nome “Barril do Lobo”.

O norte da cidade era o inverso do que tinha Midsat tinha sido apresentado no dia anterior. Ruas limpas, casas sólidas e bem estruturadas, as pessoas caminhavam nas ruas de queixo erguido, sem medos ou preocupações com sorrisos enfeitando-lhes as caras. No entanto a taberna não parecia ter tanto encanto quanto o “Dragão Vermelho”, claro que era um espaço convidativo e confortável, mas não tinha o fulgor e a energia que Slosa dava ao seu canto nesta cidade.

Os rapazes sentaram-se todos numa mesa comprida que já estava reservada para eles, pois eram clientes regulares do estabelecimento, e pediram mais uma cadeira para Midsat se juntar a eles. Eram um grupo bem humorado, que passava o seu tempo a contar piadas e historias, historias essas que passavam desde de relatos do seu tempo em serviço até historias mais levianas e exageradas das suas conquistas privadas. Eles eram um dos vários pequenos grupos de guardas que, liderados por Urv, tinham um certo nível de autonomia e trabalhavam separados do corpo centra da guarda de Lazindur. O tempo foi passado por entre comida, bebida e risadas até que um tema de conversa interessante surgiu à mesa. O tema era Leiva, a grande ladra que evadia a captura pelos guardas da cidade à meses sem conta. Quem puxava o assunto era um soldado de nome Tirve, era um rapaz novo mas muito inteligente e igualmente brincalhão.


- Mas a verdade é que aqui o nosso sargento está apaixonado pela Princesa dos Ladrões.

- Pára de exagerar, Tirve. – desculpou-se Urv por entre uma rizada. – Eu só disse que achava que a mulher tinha garra, nada mais.

- Claro! – Cortou outro soldado. – Isso também diz o Getlos de todas as mulheres com quem já dormiu.

- E nunca menti. – Afirmou esse tal Getlos, fazendo soltar uma gargalhada de todos os presentes.

- Mas não é nada mais que admiração pelo seu modo de agir. – Argumentou Urv. – Midsat, não sei se já ouviste falar da Leiva.

- Já vi os cartazes por ai espalhados. – Respondeu, omitindo o quanto mais conhecia a personagem em questão.

- Ora bem. Não sei se sabes mas a fama dessa Ladra e a honra de se encontrar nos mais procurados provem toda, ou a maioria, de um único trabalho que ela fez a um nobre. Segundo consta, um nobre da cidade cobiçava um objecto que outro rival possuía e contratou a Leiva para adquirir esse dito objecto. Até ai, Leiva já tinha alguma reputação e como as suas habilidades já eram respeitáveis o furto correu sem nenhuns problemas. Mas aqui foi onde o seu estatuto foi elevado. O nobre, não satisfeito apenas com obter o seu tesouro, decidiu que não iria pagar a Leiva e iria fazer o acto “honroso” de entregar aquela simples ladra às autoridades. Só que não contava com o engenho e os recursos da nossa pequena ladra que, não só escapou às autoridades que a iam prender, como dois dias depois, o líder da guarda de Lazindur e os magistrados receberam todos cartas contendo os vários podres do nobre. Depois disso, esse nobre acabou na prisão e nunca mais foi visto.


Houve um tenso silencio depois do sargento contar a historia. Midsat encontrava-se um tanto estupefacto, pois se a historia fosse real aquela rapariga tola que descaradamente lhe roubou o pequeno-almoço era na realidade uma adversaria de peso.

Após os poucos segundos de silencio Tirve fez-se ouvir outra vez com outro comentário trocista:


- Desculpe sargento, mas vê-se mesmo que é amor!


A partir desse instante tudo voltou à desordem inicial. Comeram, beberam e divertiram-se durante poucas horas até mentalizarem-se que teriam de voltar ao trabalho em breve. Todos abandonaram a estalagem mas apenas Urv se demorou a despedir de Midsat, pois havia um assunto que ainda não tinham tratado: os bandidos que andavam a molestar os arredores da cidade.


- Pois bem Midsat, tu querias saber o terreno que estás a pisar não é?

- Agradecia, não me sentiria à vontade a dar paços em falso.

- Nós não sabemos muito sobre os bandidos, mas posso dizer que sabemos o suficiente. Originalmente assumimos que fosse um novo grupo que estivesse a trabalhar nesta região, mas já encontramos algumas inconsistências nessa teoria. Já encontramos caras conhecidas, bandidos com que já nos tínhamos encontrado antigamente.

- Então o que acham que esteja a acontecer? Pode ser algum tipo de aliança entre os vários grupos? – Opinou Midsat.

- Não, é mais que isso. Acho que os bandidos encontraram um líder. Um líder que os juntou. E agora essa cabeça comanda um pequeno exercito de rufias que atormenta os habitantes dos burgos.

- Cortam a cabeça, matam a cobra. Não sabem onde é o esconderijo desse tal líder.

- Não é assim tão fácil Midsat. Para já, não sabemos se esse líder se quer existe. E o esconderijo. Eu pagaria uma boa moeda para saber onde esse sitio existe. Sabemos que é algures na floresta a este daqui, não sabemos é exactamente onde.

- Estou a entender. – Afirmou Midsat pensativo. – Não vejo como possa ajudar muito mais e também não vos quero manter afastados do vosso serviço muito mais tempo.

- Não tens que te preocupar. – Assegurou Urv estendendo a mão a Midsat. – Até uma próxima altura.


Feitas as despedidas, os guardas afastaram-se de Midsat em direcção ao exterior. Ainda fariam uma ultima inspecção ao povoado para descobrir se mais alguém tinha problemas com os bandidos. Posto isto Midsat decidiu voltar para o Dragão Vermelho na esperança de encontrar Lainos a fim de o questionar em relação às ervas que a condessa lhe tinha pedido. No entanto quando entrou no estabelecimento deparou-se apenas com Slosa e as suas filhas a limpar o recinto.