Colector de corações

Parte 4

Após prestar o seu respeito à Deusa, Midsat retirou do bolso um lenço vermelho e atou à volta do pulso. Esta era a marca que ele tinha de usar para o intermediário o encontrar.
Não passou muito tempo até um homem se sentar ao seu lado. Era mais alto que Midsat, tinha grandes músculos e uma expressão severa. Estava vestido numa armadura de guerreiro e trazia o brasão da cidade, mas as cores não eram dela, possivelmente seria um guarda privado. O seu cabelo era curto, loiro e forte, o seu rosto estava marcado com uma cicatriz que apenas por pouco lhe falhou o olho. Os olhos castanhos fecharam e baixou a cabeça em prece, passado um instante ele levantou a cabeça e ainda de olhos fechados pronunciou-se:

- Ao menos és devoto.
- Assumo que seja o meu patrono.
- Não. – Respondeu o homem calmamente. – Mas sou eu que o vou levar a ela.

Sem oferecer outra palavra, Midsat deslocou-se para o exterior do templo, sendo seguido pelo guarda.

- O meu nome é Tarne. Capitão da guarda do Palácio de Revelette.

Midsat hesitou ao ouvir o seu nome. Tinha sido mencionado no dia anterior mas possivelmente seria apenas coincidência.

- Da condessa. Então é ela que contratou a Mão Negra.
- Sim. Pelo que parece ela tem necessidade dos vossos… – O capitão fez uma pequena pausa e suspirou mostrando-se pouco à vontade com o assunto. - … Serviços. Por qualquer razão abandonada por Arana.

Os palácios dos nobres localizavam-se geralmente afastados da cidade, e este não era nenhuma excepção. Saíram pelo portão Este e seguiram para norte. O aspecto era sempre o mesmo: casas habitadas por cultivadores e pastores e imensos campos de plantações espalhados pelas planícies. Eventualmente, o terreno entrou em mudança. As casas deram lugar a árvores e vegetação, mas contrariamente ao aspecto das habitações, o caminho passou de um simples trilho de terra para um exuberante calçado de mármore, e à distância Midsat conseguiu vislumbrar um belo palácio. As árvores tinham se adensado, mas onde o palácio marcava a sua existência, estava uma pequena clareira que deixava os frágeis raios da manhã entrarem e iluminarem a superfície da entrada, também esta feita em mármore. Havia uma pequena parede de pedra que delimitava o terreno dos condes e dentro dela vários serventes tratavam de uma horta de tamanho respeitável, a qual parecia suficiente para alimentar a pequena população deste pequeno palácio.
Tarne e Midsat entraram dentro do território e deslocaram-se para a entrada do palácio. A porta de entrada era colossal e feita de madeira escura, reforçada com aço. Tarne bateu duas vezes com o punho pesado na porta, e passado uns instantes esta abriu-se.
Para surpresa de Midsat do outro lado da entrada do palácio a face que os recebeu não lhe era desconhecida, o olhar negro sobressaltado, o sorriso nervoso fizeram Midsat recordar-se do anoitecer e aperceber-se que os dois Tarne eram somente um. Desta vez a rapariga não tinha um rapaz a passear na sua mão, mas sim uma bebé enroscada nos seus braços a fita-lo de olhos bem abertos. Tarne mostrou um grande sorriso ao vê-la e depois pronunciou-se com deleite na voz:

- Ah. Menina Delena. Ainda bem que é você. Prepare-se, pois temos de ir vender os mantimentos extra. Mas antes disso, podia levar este senhor para os aposentos da condessa?
- Com certeza senhor Tarne. – Concordou a rapariga com uma pequena vénia. – Acompanhe-me senhor.

Tarne ficou à porta lançando um olhar de suspeita a Midsat enquanto que os dois se deslocaram para dentro do palácio. O corredor de entrada era simples: paredes de pedra onde estavam penduradas pequenas velas que iluminavam o caminho. Portas e chão feitos aparentemente da mesma madeira. Mas ao saírem do corredor e entrarem no salão, o esplendor do palácio dos Revelette finalmente mostrou-se aos olhos de Midsat. Duas escadarias em caracol feitas em mármore convergiam numa única saída no topo do primeiro andar. Ricas mobílias feitas de madeira, adornadas com vários detalhes meticulosamente esculpidos enfeitavam as paredes, onde eram exibidas delicadas porcelanas, belas tapeçarias e exuberantes jóias. Dois grandes candelabros e várias janelas situadas no primeiro andar iluminavam todo o interior com raios de sol e luz de velas. Entre as duas escadas estava uma porta que saltava à vista, velha, usada e com uma grande, ferrugenta fechadura e foi em direcção a ela que Delena se deslocou.

- De quem é a bebé? – Perguntou Midsat.

Delena sorriu e acariciou o cabelo delicado da menina nos seus braços respondendo-lhe:

- É filha da senhora da casa, o seu nome é Elza.
- A descendente de Revelette. Deve ser uma honra cuidar dela.
- É. – Respondeu a serva com um sorriso. – A minha senhora diz que mais ninguém nesta casa é apto a cuidar da menina para alem de mim.

Cuidadosamente, para não deixar a menina cair dos seus braços, Delena retirou uma chave do bolso do seu avental e meteu-a na fechadura. A porta abriu-se com um violento ranger mostrando um pequeno e escuro túnel com tecidos roxos pendendo do tecto.

- Teremos de nos separar aqui. – Falou Delena com um sorriso na cara mas sem fazer contacto com os olhos. – A senhora pediu-me para fazer o resto do caminho sozinho. E não se preocupe, é só seguir em frente.
- Com certeza menina. Obrigado pela companhia. – Anuiu Midsat com uma pequena vénia com a cabeça.

Havia algo estranho que Midsat não conseguia entender, uma atracção bizarra que ele sentia por aquela rapariga. Era uma criatura frágil e simples mas mesmo assim capturava a atenção.
Quando Midsat passou pela porta, o olhar de Delena não abandonou a figura de Midsat até ele desaparecer por entre o labirinto de sedas púrpura.
O túnel na realidade era somente entrada para uma escadaria que levava até à cave. Descer por entre os tecidos não era muito propício ao equilíbrio, mas Midsat conseguiu mantê-lo e descer até o ultimo degrau. Lá, em vez de uma porta estava um arco adornado por runas e o que estava para alem dele encontrava-se ocultado por um último véu. Para lá dessa ultima cortina, as paredes da cave estavam forradas com estantes cheias de pergaminhos, livros, frascos com ervas, minerais e outros objectos de alquimia e magia. Um perfume embriagante inundava a sala provindo de varias velas aromáticas espalhadas pelo chão e estantes. E no centro de tudo com uma presença imponente estava a condessa: uma bela mulher de cabelos loiros, encaracolados e sedosos caindo delicadamente sobre os seus ombros que o seu vestido deixava a descoberto. Sua pele branca não continha um único sinal de imperfeição e parecia brilhar, reflectindo a luz das inúmeras velas. A gola alta cobria-lhe o pescoço e o resto do vestido colava-se ao corpo de uma maneira quase íntima. A condessa teria obviamente um espartilho vestido, pois a sua silhueta cingia drasticamente na cintura antes de se abrir na voluptuosidade que a sua saia lhe dava. Assim que Midsat passou a cortina, foi presenteado com o seu sorriso branco que apareceu por entre um par de lábios rosados, acompanhado por uma risada jovial e os seus olhos azuis que brilhavam como jóias.
Ela pousou o livro que segurava e graciosamente sentou-se numa poltrona que tinha perto. Elevou a mão em direcção de Midsat e com uma voz doce e sedutora chamou por ele:

- Midsat Delron. É um prazer tê-lo aqui.
- Um prazer vê-la a você senhora. – Respondeu-lhe Midsat segurando e beijando a sua mão.
- Pela Deusa. Tão bem educado. – Admirou-se a condessa, levando uma mão há boca para esconder o quando se mostrava agradada. – As últimas vezes que usei os serviços da vossa ordem os seus companheiros nunca foram tão galãs. O meu nome é Elizia Revelette.
- Agradeço o elogio senhora Revelette, mas gostaria de saber sobre o meu trabalho.
- Claro que sim meu caro. – Anuiu a condessa, erguendo-se da sua poltrona. Em seguida dedicou a sua atenção às várias estantes que adornavam o seu covil. No entanto a sua suavidade de movimentos e a sua perfeição estética tinham causado uma quase hipnose a Midsat, que seguia atentamente os movimentos da soberana daquele palácio. Finalmente ela acabou por retirar um livro e não tardou em mostrar a Midsat uma página com a ilustração de um cristal. – Ithil en Aran. A Lua de Arana. É isto que procuro.
- Mas é só um cristal, se é só um tesouro porque não contratou um… - Midsat fez uma breve pausa rindo-se para si próprio, enquanto que o olhar brilhante de Elizia mantinha-se focado na sua cara. - … Um profissional na arte de adquirir tesouros.
- Sim, podia. Mas esses, profissionais, como você tão bem expôs, não são os melhores em entender maneiras ou a manter sigilo.
- Mas senhora, com todo o respeito, porque não usar seus guardas? Porquê recorrer à ordem num trabalho tão trivial? Para alem do mais, os nossos serviços não são baratos.
- Meu caro Midsat Delron. – Interpôs a condessa colocando uma mão sobre o peito de Midsat e aproximando-se perigosamente. – O trabalho não é assim tão trivial, de certo que haverá trabalho para… as suas competências especiais. E para alem disso, os meus guardas podem ser bons soldados, mas apesar da sua idade, Tarne ainda é inocente nos aspectos da vida e há coisas que vão para lá da sua compreensão.

Midsat manteve-se apreensivo enquanto a mão da condessa persistia no seu peito. Mas os olhos safira continuaram cravados em Midsat sem sinal de aperceberem o desconforto dele, e assim mantiveram-se até a condessa calmamente afastar-se, retirando a mão de cima do peito de Midsat, um dedo de cada vez.
Engolindo a seco e como se sentisse que um peso acabava de ser retirado do seu estômago, Midsat sentiu-se desconfortável e ligeiramente tonto.
- Mas por agora ainda não é tempo de colher a lua. – Prosseguiu a condessa. – Precisará de ser no tempo certo. Agora necessito que faça outra coisa por mim.

A condessa retirou um papel de uma prateleira e apresentou-o a Midsat. Tinha nomes e as quantidades de varias ervas.

- Daqui a três dias traga-me esses ingredientes e poderemos passar à outra fase.

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