Colector de corações

Da orla da floresta conseguia-se vislumbrar a muralha oeste de Lazindur, que atingida pelos raios do sol do meio-dia, resplandecia branca e pura como um local sagrado nunca tocado por mãos nefastas e ao longo da muralha norte, o grande castelo mantinha-se incólume, onde nenhum inimigo do império tinha posto pé. Estendidos diante da cidade estavam vastos campos, sarapintados por animais, pessoas e casas, alguns semeados com diversas plantações, outros frescos e verdejantes onde todo o tipo de gado passeava.
Era a primeira vez que os olhos Midsat tinham a Capital perante si e as historias que os seus companheiros lhe contavam não se conseguiam comparar com o esplendor que se desvendava ao seu olhar.
Midsat desmontou do seu cavalo e deixou-o entregue ao pasto. Retirou uma maçã dos seus mantimentos e sentou-se na relva, desfrutando da paisagem, da fruta e do relaxamento. Nunca antes tinha experiênciado um momento tão sereno e pacifico. Todos os dias na fortaleza tinham de ser devotos ao treino do corpo e da mente, ao estudo de uma arte de combate, ou à análise de uma criatura, de um governo, de um feitiço, tornando os momentos de descanso raros e os com este esplendor, praticamente inexistentes.
O sol foi percorrendo o seu caminho em direcção ao oeste e Midsat só continuou o seu rumo à cidade quando o astro estava prestes a tocar no horizonte. Guiando o cavalo pelas rédeas percorreu os arredores de Lazindur pela estrada principal. Eram, poucos os que também caminhavam por essa estrada, com o anoitecer iminente apenas uns últimos mercadores chegavam a Lazindur para passar a noite, alguns trabalhadores que voltavam ás suas casas nos burgos e um grupo de guardas que patrulhavam a estrada. Afastados da estada estavam os agricultores, arrumando as suas ferramentas, levando o seu gado para os corrais enquanto que as mulheres carregavam as ultimas cestas de alimentos para a segurança dos armazéns ajudadas pelas crianças. Apesar de ser algo usual em todas as aldeias do império, parecia que a chegada da noite atormentava mais o povoado de Lazindur do que o da fortaleza.
Após deixar o cavalo nos estábulos à entrada da cidade, Midsat apressou-se pelos portões sob os gritos de um guarda, que periodicamente avisava que os portões iriam fechar antes do sol se pôr. Ao contrário do que a pouca afluência de pessoas pela estrada dava a esperar, no interior da cidade encontrava-se um mar de cabeças que também se preparavam para a noite. Este era o distrito mercantil, havia poucos edifícios e no centro existia uma grande praça onde estavam montadas varias tendas. Midsat achou admirável de ver tanta gente diferente no mesmo sítio, Enquanto que alguns regateavam com uns últimos clientes, outros fechavam as lojas e arrumavam as mercadorias e no meio daquele caos criado, todos pareciam estar organizados e saber o seu lugar.
Caminhar pelas tendas, uma delas conseguiu chamar-lhe a atenção. O seu dono falava com um possível cliente e por entre a sua mercadoria havia um punhal de excepcional beleza. Midsat pegou nele e examinou-o. A lâmina num dos lados era dentada enquanto que fio da lâmina fazia uma curva suave. Não estava afiada, mas parecia ser muito aguçada. O seu cabo era feito de ossos e estava mais trabalhado, com cortes horizontais no cabo todo e o final que acabava numa escultura que parecia um olho com uma jóia vermelha no meio como se fosse uma pupila de um réptil. O vendedor viu o seu interesse na arma e após acabar o negócio com o outro cliente dirigiu a palavra a Midsat. Era um homem de estatura baixa mas corpulento, já tinha alguma idade pois o seu cabelo já tinha as raízes grisalhas e a barba rala já se encontrava completamente cinzenta. A sua cara possuía varias rugas especialmente vincadas nos olhos.

- Se estiver interessado na adaga passe por cá amanhã que já a terei afiado. Agora vou ter de fechar. – Anunciou com uma voz animada apesar do cansaço aparente no seu rosto.
- É uma peça bonita. Talvez. – Respondeu Midsat sorrindo para o punhal.
- Talvez não é bom para negócio. Ou compra ou não.
Colocando de novo o punhal na banca Midsat dirigiu a sua atenção para o mercador.
- Não tenho maneira de o comprar neste momento. Talvez mais tarde.
- Muito bem. Ficarei à espera. – Disse o mercador sorrindo afavelmente, começando a arrumar a tenda.
Midsat hesitou um pouco.
- Já agora, se não for muito incómodo, poderia informar-me de uma estalagem para passar a noite?
- Ah! Novo em Lazindur rapaz? – Questionou o mercador.
- Primeira vez na cidade. Ainda não me sei orientar neste mar de gente.
- Eu sei como isso é. Eu cá sou de Mireti. Alguma vez esteve lá?
- Não.
- Linda cidade. – Continuou num tom saudoso. - As casas construídas na encosta da montanha, com cada rua em patamares diferentes. Praias de areia dourada. E o mar. Quem vê o mar de Mireti nunca o esquecerá.
Por uns instantes o mercador parou, ficando a olhar para os objectos que arrumara antes de prosseguir.
- Mas não é isso que quer saber pois não? Ora bem. Há vários estabelecimentos espalhados pela cidade, são fáceis de encontrar. Mas eu não me confio a mais ninguém para alem da Madame Slosa, dona do Dragão Vermelho. Fica na zona má da cidade mas não há outro sítio como aquele.
- Na zona má?
- Sim, sim. Mas vale a pena, os melhores pratos são servidos lá, as camas são confortáveis e é barato. – Explicou o mercador, fechando umas caixas. – Para alem do mais, é um bom local para ganhar contactos menos… legais. De qualquer maneira, eu vou dirigir-me para lá, se me quiser acompanhar está mais que à vontade.
- Aceito. Acho que me perderia a estas horas. – Respondeu Midsat.
- Óptimo. Então se fizer o favor de esperar um pouco.

Enquanto o mercador acabava de arrumar a sua tenda, Midsat observou o local com mais atenção. A noite estava eminente e o céu quase negro, as tochas e os candeeiros a óleo já estavam a ser acesos pela cidade. As pessoas tinham-se dispersado e só alguns mercadores restavam, acabando de fechar as suas bancas.
Nesta observação, Midsat conseguiu averiguar que o mercado não se encontrava no centro da cidade. O centro era um jardim com várias árvores e campos de relva que se encontrava a este de onde Midsat se encontrava. A sul do mercado estava uma pequena área residencial envolvendo o templo de Anara onde os residentes levavam oferendas à Deusa e as sacerdotisas tratavam dos doentes e prestavam culto a Anara. Os seus olhos continuaram a prescutar os arredores fazendo-o perdeu a noção do que se passava perto de si, até que algo se esbarrou contra as suas pernas.
Tinha sido uma criança, que após o impacto se desequilibrou, caindo no chão e que agora fitava Midsat de olhos arregalados. Midsat estendeu a mão ao garoto, que aceitou o acto, usando-a para voltar a levantar-se. Mas ao invés de prosseguir o seu caminho, continuou a olhar para Midsat. Por breves instantes ambos ficaram de olhares cruzados e expressões imutáveis antes de serem interrompidos por uma rapariga.

- Marin! Estás aqui, pensei que te tinha perdido. – Disse para o rapaz, aparentemente mais novo que ela. Em seguida, dirigiu a palavra a Midsat e assim que ele lhe retribuiu o olhar a rapariga baixou o rosto. – Peço imensa desculpa senhor, espero que ele não o tenha incomodado. Pede desculpa Marin.
- Não, ele não incomodou, só teve um pequeno desequilíbrio. – Respondeu Midsat não conseguindo conter um sorrizo. – E eu não sou ninguém de importante, não é razão para a menina baixar a cabeça.

Então a rapariga levantou a cabeça rapidamente e fitou Midsat por poucos instantes antes de começara a corar e voltar a baixar a cabeça repentinamente.

- Peço desculpa, mas é uma questão de respeito. E na minha posição é assim que devo agir. – Justificou-se aparatosamente. – E Marin ainda não lhe pediu desculpa pelo incómodo.
- E não tem de pedir. – Disse Midsat esfregando o cabelo ao rapaz. – Um homem sabe quando fez mal e precisa de se desculpar.

O rapaz afirmou com a cabeça e sorriu, pouco depois os sinos do templo tocavam, marcando a passagem de hora.

- Marin, temos de ir, o senhor Tarne já deve estar a nossa espera.

A rapariga fez uma vénia para Midsat, agarrando em seguida na mão do pequeno Marin e deslocou-se em passo acelarado para a saída da cidade. Midsat viu os dois a afastarem-se e analisou-os. Tinham idades demasiado próximas para serem mãe e filho, mas eram demasiado semelhantes para não serem da mesma família. O que restava a possibilidade de serem irmãos. Ambos tinham uma cara arredondada com pele delicada e branca, os seus cabelos tinham a mesma tonalidade de castanho claro e os seus olhos eram idênticos, ambos grandes e negros. Mas apesar da análise ser aos dois o olhar de Midsat ficou preso no cabelo da rapariga que entrançado, longo e volumoso, balançava de um lado para o outro conforme ela andava. O mercador aproximou-se de Midsat enquanto ele estava distraído e colocando-se ao seu lado comentou.

- Estou a ver que já anda a fazer amigos.
- Acho que gosto de mulheres com cabelos compridos. – Respondeu-lhe Midsat sem deslocar o olhar.

O mercador soltou uma grande risada e continuou.

- Todos nós gostamos. - Comentou num tom jocoso. - É melhor irmos para a estalagem antes que as criaturas piores da noite comecem a invadir as ruas

2 comentários:

AJPires disse...

Quero o resto... LOL
Muito Bom

Nerzhul disse...

Ah o velho mercado de Lazindur, onde o pessoal anda a vender as primogénitas para comprar batidos de framboesa... Bons tempos..

Vê lá se desta não deixas o pessoal a arder com as sequelas!