Colector de Corações

Parte 6

Encontravam-se a meio da tarde e as raparigas movimentavam-se atarefadas de um lado para o outro, carregando pratos e limpando o chão e mesas. Com os cabelos presos para não lhe estorvarem a vista e uma pena molhada em tinta numa mão, Slosa ia escrevendo, pausadamente, num papel que tinha em cima do balcão. A filha de Slosa que tinha falado com Midsat fez-lhe um pequeno cumprimento com a mão e baixou a cabeça. Midsat apenas respondeu-lhe com um sorriso, dirigindo-se até Slosa.. Vendo-o ela pousou a pena e com o seu sorriso passivo fez uma vénia a Midsat:

- Bem vindo Midsat. Lamento a confusão desta manhã. Aquela rapariga não se sabe comportar. Já não é a primeira vez que faz algo assim.
- Não precisa de se desculpar. – Respondeu-lhe Midsat um tanto cordialmente. – A minha reacção não foi louvável. Fervi em pouca água e sou eu quem precisa de se desculpar.

Slosa observou Midsat sorridentemente e estendeu-lhe os braços da mesma maneira que cumprimentou Lainos. Midsat hesitou, mas prontamente imitou o mercador e estendeu os braços juntando as suas mãos com as de Slosa, que sorrindo apertou as mãos de Midsat e continuou:

- A Leiva é insuportável, arrogante e impulsiva. Mas não posso negar-lhe entrada.
- Porque não? Se ela é prejudicial para o negocio não vejo razão para a deixar entrar.
- Ela não é prejudicial, a tua presença aqui confirma que não é por aquela rapariga que os meus clientes deixam de . – Continuou Slosa deixando o cumprimento peculiar. – E quando eu era mais nova a minha vida, como ela, também estava longe de assentar.

As suas filhas foram parando o seu trabalho ao ouvir as palavras a fluir da boca de Slosa.

- Algo aconteceu. – Continuou desviando o olhar de volta para o pergaminho e pegando na pena. – Algo fez-me mudar. E como eu mudei, ela também pode mudar, não há razão de lhe virar as costas.

Reparando na atenção dada à sua conversa pelas filhas, Slosa respirou fundo e de olhos fechados sorriu dizendo:

- Mas isso é uma historia para outra altura. E que faz aqui Midsat? Nesta altura não costumamos ter clientes e aproveitamos para limpar um pouco o Dragão e organizar as contas. Não estamos prontas para servir.
- Nada disso Slosa, nem precisa de se preocupar. Apenas esperava encontrar Lainos aqui. – Respondeu Midsat. – Procuro umas ervas e pensei que ele poderia ajudar-me.
- Se o queres encontrar terás mais sorte à noite pois ele estará aqui de certeza. – Ponderando um pouco, Slosa molhou a ponta da pena na tinta e pronta a escrever mais uma linha voltou a falar. – Eu estou a escrever a lista de mantimentos para amanhã uma delas ir comprar. Se quiseres podes dizer-me o que procuras e elas depois trazem.

Pegando na folha entregue por Elizia a Midsat, Slosa arregalou os olhos ao conjunto de ervas necessárias. Fitou os nomes num silencio desconfortante. Apreensiva mordeu o lábio inferior enquanto esticou o pequeno papel com as duas mãos.

- Está tudo bem? – Interrogou Midsat confrontado com o mau estar de Slosa.
- Nada. – Tentou assegurar Slosa mas deixando a sua voz estremecer. Segundos bastaram para Slosa recompor o seu controlo e a expressão de assombro foi rapidamente trocada por um caloroso sorriso. – Não foi nada, mas agradeço a preocupação. Ora bem, não será problema, amanhã uma das minhas meninas trará isto. Por volta da hora do almoço poderás vir buscar.
- Tem a minha gratidão Slosa.

O tempo passou calmamente, trazendo a afluência de clientes da noite passada. A comida foi sendo servida e a bebida começou a fluir dos jarros e a verter dos copos para dentro das gargantas. O ambiente festivo foi-se espalhando e com a chegada de trovadores a musica inundou os ouvidos de todos presentes. Slosa e as suas filhas foram se ocupando a servir os clientes e chegando a uma altura na noite já estavam inundadas sob trabalho. As luzes, perfumes e cores transformavam aquela pequena estalagem num local magico e cheio de vida, tornando difícil de imaginar o local e transformando o Dragão Vermelho num espaço magico. E como habitualmente, os mesmos mercenários estavam espalhados pelo estabelecimento com olhos atentos a quem causasse alguma agitação.
A noite ainda não tinha espalhado completamente o seu manto estrelado sobre o céu quando Lainos entrou pela porta do Dragão. Prontamente cumprimentou Slosa com a sua maneira peculiar e em seguida cumprimentou Midsat. Tomou um jantar leve acompanhado por Midsat que não resistiu em meter conversa em relação às ervas.

- Podes dizer-me para que precisas destas ervas? – Questionou Lainos depois de observar o papel.
- Julgo que não estou em liberdade de revelar. Mesmo que deva admitir que eu próprio não sei. – Retorquiu Midsat tomando um trago de vinho. – O que me pode dizer em relação a essas ervas?
- Bebida de bruxas. São ingredientes poderosos e não há muitos sítios onde se possa encontrar. – Contou Lainos esfregando a rala barba. - Aqui na cidade também são raros mas se souberes onde procurar não deve ser muito difícil.
- O que quer dizer com bebida de bruxas? Nunca ouvi essa expressão.
- Como a expressão indica, são usados por bruxas para poções. – Explicou Lainos.
- Sim. Dois destes são usados em bastantes poções mas o terceiro não consigo identificar o uso.
- Não sabes mesmo para que precisas? – Interrogou Lainos, recebendo apenas uma afirmação negativa. - Pois bem. Isto é uma raiz usada apenas para as poções mais fortes e já ouvi rumores que também è usada para fazer algo mais sombrio.
- Magia negra? – Questionou Midsat ficando estático ao aperceber-se das implicações que aquela pequena lista poderia ter.
- Exactamente meu rapaz. Mas também pode ser nada, pode ser outro tipo de mistura.

Midsat relembrou o aspecto do covil da condessa. Apesar de ser semelhante a um antro de um feiticeiro, não possuía aspecto de ser utilizada magia negra. Não havia ossos de animais ou até de humanos, não havia símbolos negros ou altares sombrios, tudo aparentava que era só um local para a pratica de magias simples, no entanto a duvida tinha sido implementada e por agora iria persistir.
A noite foi acabando pausadamente, com os clientes a abandonarem a estalagem. A musica cessou e os pedidos de bebida foram findando. Os únicos clientes que se mantiveram foram aqueles que as camas para a noite seriam aquelas daquele estabelecimento.
Após o serão passado com Lainos, Midsat apercebeu-se que ao acompanhar o mercador na bebida tinha passado o seu limite de álcool. A sua visão estava ligeiramente turva e os seus membros estavam um pouco dormentes. Tentando dissimular o seu estado, Midsat manteve-se no seu lugar até todos abandonarem o recinto. Quando tentou levantar-se cambaleou e voltou a cair no banco, soltando varias rizadas a Slosa e às suas filhas. Tella, a mais nova das quatro, rapidamente foi ao auxilio de Midsat por entre pequenos risos.

- Nunca me foi avisado o quanto Lainos bebia. – Contestou Midsat, sendo cego pelo manto de cabelo dourado quando Tella o ajudou a levantar-se.

Sendo pequena em estatura, Tella teve algumas dificuldades em carregar Midsat e as suas irmãs não a conseguiam acudir pois estavam ocupadas com mãos cheias de pratos e copos. No entanto algo aliviou a pressão que Midsat fazia em Tella. Com o outro braço sobre os seus ombros e a face ocultada por o capuz, a princesa dos ladrões ajudava Tella a carregar Midsat. Nenhuma das raparigas presentes falou, mas era visível a apreensão nas suas caras, especialmente aquelas que tinham presenciado os acontecimentos desta mesma manhã. As duas raparigas carregaram-no até ao quarto e depois de Tella abrir a porta onde Leiva a dispensou. Relutante, Tella abandonou-os e Leiva levou Midsat para dentro do quarto. Lá dentro ela lançou-o para cima da cama e sentando-se na ponta tirando-lhe as botas.

- Nunca esperei que ficasses tão mal só por o nosso primeiro encontro não ter corrido tão bem. – Troçou Leiva acabando de tirar a primeira bota.
- O que é que estás tu aqui a fazer? – Questionou Midsat de olhos fechados sem conseguir mexer os seus membros.
- Normalmente pensaria que a resposta certa seria que vinha roubar tudo o que tens de valioso, mas como já vi que o que tens de valioso é quase inexistente e como possivelmente não te lembrarás de nada amanhã. Vim pedir-te desculpa.
- Tu nem me conheces e estás a pedir-me desculpa? – Disse Midsat, soltando uma grande gargalhada de seguida. – Ainda por cima alguém com a tua reputação?
- Não se é a melhor ladra de Lazindur só a fazer inimigos. – Respondeu Leiva retirando a segunda bota de Midsat. – E também, eu fico nervosa quando conheço outras pessoas.

Ambos se riram enquanto Leiva acabava por tirar o cinto e o pequeno arsenal de facas de Midsat.

- Porque estás a fazer isto? – Perguntou finalmente Midast quase prestes a render-se ao sono.
- Porque eu sei o que é dormir com a cabeça turva pelo álcool e pedaços de cabedal colados ao corpo. – Contrapôs Leiva sorridentemente e levantando-se da cama.

Ela afastou-se até à porta e antes de abandonar o quarto ainda acabou por dirigir a palavra a Midsat uma ultima vez:

- Depois podemos voltar a falar. Se te lembrares de alguma coisa.

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Peço desculpas pelo atraso de uma semana mas para compensar tentarei publicar outra parte desta sexta para sábado.

Colector de Corações


Parte 5


Com o seu objectivo definido Midsat abandonou o recanto da condessa. Abandonou o palácio acompanhado por uma aia que esperava por ele, substituindo a menina Delena e escoltado por Tarne abandonou o terreno dos Revelette.

O caminho de volta até aos arredores de Lazindur foi sem incidentes, para alem da fome que começava a apertar no estômago. O caminho até ao palácio tinha sido longo e a viagem de volta tinha-se mostrado igualmente extensiva, porque quando Midsat conseguiu avistar as muralhas da cidade a posição do sol já se afastara do meio dia. Mas ainda houve algo mais que o deteve.

Ao passar pelas casas da plebe a atenção de Midsat foi capturada por algo que acontecia à distancia: um grupo de seis homens intimidavam um família. Aquele que parecia ser o líder agarrava uma jovem rapariga pelos cabelos enquanto gritava para outros dois que pareciam ser os pais da rapariga. E ainda longe da percepção destes, escondidos por entre as casas, cercas e outros objectos, homens vestidos com as cores de Lazindur avançavam lentamente com espadas desembainhadas em direcção aos outros.

Vendo o que acontecia, Midsat abrandou o cavalo, esperou não ter sido visto e continuou a observar. Os homens da cidade quedaram-se nas esquinas e cantos observando a situação que se desenrolava enquanto que o líder dos bandidos continuava a sua berraria. A rapariga nas suas mãos chorava vigorosamente, enquanto que aqueles que aparentavam ser seus pais encontravam-se de joelhos, com os braços erguidos, clamando por clemência. E nesse instante, como se as suas preces fossem ouvidas, um momento fulcral das suas vidas desenrolou-se aos olhos de Midsat, quando o chefe dos bandidos lançou a rapariga aos seus pés. Nesse preciso instante, um dos soldados que observava a situação levou uma pequena flauta aos lábios e fez soar uma nota aguda. Com esse sinal, todos os soldados saltaram dos seus esconderijos e lançaram-se sobre os bandidos. A maioria nem tiveram tempo de desembainhar as suas armas ante o aço dos sues agressores. Apenas dois ofereceram resistência. Um deles tombou rapidamente mas o outro pegou na rapariga e usou-a como refém. Perante isto, Midsat atiçou o cavalo e lançou-se em direcção do evento. Com um movimento rápido e preciso, lançou a sua navalha contra o ladrão, que estando de costas nem se apercebeu da aproximação rápida de Midsat antes que fosse tarde demais, e com o grito de horror da refém ao ter a sua face salpicada com sangue, o corpo do seu agressor caiu sem vida com uma navalha cravada na garganta.

Todos suspiraram de alivio quando tudo acabou. Com os agressores tombados os pais correram a abraçar a sua filha. Os soldados sorriram e congratularam-se, limpando o sangue das suas armas. O mesmo homem que tinha ordenado o pequeno ataque distribuiu ordens aos seus soldados. Alguns dos seus homens começaram a carregar os cadáveres, enquanto que outros foram falar com a família e o seu líder dirigiu-se até Midsat. O sol batia-lhe na face e o seu aspecto pareceu mudar, os cabelos compridos castanhos pareceram avivar em tons cobre, os olhos escuros iluminaram-se num brilhante verde e a sua pele pareceu ganhar outro tom com os raios de sol. Ele estendeu a mão coberta no metal da armadura a Midsat.


- Isso foi um bom arremesso. Ao meu nome é Urv e de minha parte e de parte dos meus rapazes, agradecemos-te.

- O meu nome é Midsat. – Apresentou-se, de seguida desmontando do seu cavalo. – O que se passou aqui?

- O quê? Não sabes? É um grupo de bandidos que anda a causar distúrbios por estas zonas. Estes aqui estavam a ser extorquidos dos seus bens por “protecção”, como eles o diziam.

- Pelo que pareceu eles não estavam a exercer o seu poder da forma certa.


O Urv gargalhou, não num tom jocoso mas de facto agradado pela opinião de Midsat.


- Não. de facto aquela não era a forma certa de oferecer protecção. – Respondeu risonho. – Mas ai está o problema. O pagamento é para protecção contra eles próprios e mesmo se forem pagos, não se interessam minimamente pela segurança destas pessoas. Até acho estranho como ainda não houveram nenhuns saques.

- Não? Então o que era isto? – Interrogou Midsat observando o comportamento dos que o rodeavam.


Havia pessoas começando a juntar-se para ver o que tinha sucedido naquele local. Enquanto isso, alguns dos soldados de Urv tentavam dispersa-los.

Por uns Urv acompanhou-o a perscrutar o que os rodeava antes de lhe responder:


- Bem, seria uma explicação longa e chata. E não acredito que te encontres muito interessado em ouvir.

- Não é bem assim. Eu acabei de me meter em algo e gostaria de conhecer o território.

- Conhecer o território? – Urv gargalhou outra vez e depois deu um pequeno encontrão em Midsat. – Eu gosto de ti. Ora bem, fazemos assim, a tua intervenção agora ajudou-nos, portanto eu e os meus rapazes vamos pagar-te o almoço.

- Não. Não posso aceitar tal coisa por tão pouco feito.

- Tão pouco? Tu acertaste com uma navalha no pescoço daquele bandido. Ele caiu morto sem sequer pestanejar. Foi um golpe muito bom e até deves ter salvo a vida daquela rapariga. – Discursou Urv sem tirar os olhos dos de Midsat. Em seguida gritou para o seu grupo. – Rapazes, que dizem a pagarmos o almoço a este homem?


Houve várias respostas afirmativas e algumas zombarias em relação à proeza de arremesso de um membro do grupo. Foi assim que Midsat se viu jurado a acompanhar este grupo de soldados numa refeição.

Depois de enterrarem os mortos e ajudarem a família a recompor-se dirigiram-se para a zona norte de Lazindur, para uma taberna de nome “Barril do Lobo”.

O norte da cidade era o inverso do que tinha Midsat tinha sido apresentado no dia anterior. Ruas limpas, casas sólidas e bem estruturadas, as pessoas caminhavam nas ruas de queixo erguido, sem medos ou preocupações com sorrisos enfeitando-lhes as caras. No entanto a taberna não parecia ter tanto encanto quanto o “Dragão Vermelho”, claro que era um espaço convidativo e confortável, mas não tinha o fulgor e a energia que Slosa dava ao seu canto nesta cidade.

Os rapazes sentaram-se todos numa mesa comprida que já estava reservada para eles, pois eram clientes regulares do estabelecimento, e pediram mais uma cadeira para Midsat se juntar a eles. Eram um grupo bem humorado, que passava o seu tempo a contar piadas e historias, historias essas que passavam desde de relatos do seu tempo em serviço até historias mais levianas e exageradas das suas conquistas privadas. Eles eram um dos vários pequenos grupos de guardas que, liderados por Urv, tinham um certo nível de autonomia e trabalhavam separados do corpo centra da guarda de Lazindur. O tempo foi passado por entre comida, bebida e risadas até que um tema de conversa interessante surgiu à mesa. O tema era Leiva, a grande ladra que evadia a captura pelos guardas da cidade à meses sem conta. Quem puxava o assunto era um soldado de nome Tirve, era um rapaz novo mas muito inteligente e igualmente brincalhão.


- Mas a verdade é que aqui o nosso sargento está apaixonado pela Princesa dos Ladrões.

- Pára de exagerar, Tirve. – desculpou-se Urv por entre uma rizada. – Eu só disse que achava que a mulher tinha garra, nada mais.

- Claro! – Cortou outro soldado. – Isso também diz o Getlos de todas as mulheres com quem já dormiu.

- E nunca menti. – Afirmou esse tal Getlos, fazendo soltar uma gargalhada de todos os presentes.

- Mas não é nada mais que admiração pelo seu modo de agir. – Argumentou Urv. – Midsat, não sei se já ouviste falar da Leiva.

- Já vi os cartazes por ai espalhados. – Respondeu, omitindo o quanto mais conhecia a personagem em questão.

- Ora bem. Não sei se sabes mas a fama dessa Ladra e a honra de se encontrar nos mais procurados provem toda, ou a maioria, de um único trabalho que ela fez a um nobre. Segundo consta, um nobre da cidade cobiçava um objecto que outro rival possuía e contratou a Leiva para adquirir esse dito objecto. Até ai, Leiva já tinha alguma reputação e como as suas habilidades já eram respeitáveis o furto correu sem nenhuns problemas. Mas aqui foi onde o seu estatuto foi elevado. O nobre, não satisfeito apenas com obter o seu tesouro, decidiu que não iria pagar a Leiva e iria fazer o acto “honroso” de entregar aquela simples ladra às autoridades. Só que não contava com o engenho e os recursos da nossa pequena ladra que, não só escapou às autoridades que a iam prender, como dois dias depois, o líder da guarda de Lazindur e os magistrados receberam todos cartas contendo os vários podres do nobre. Depois disso, esse nobre acabou na prisão e nunca mais foi visto.


Houve um tenso silencio depois do sargento contar a historia. Midsat encontrava-se um tanto estupefacto, pois se a historia fosse real aquela rapariga tola que descaradamente lhe roubou o pequeno-almoço era na realidade uma adversaria de peso.

Após os poucos segundos de silencio Tirve fez-se ouvir outra vez com outro comentário trocista:


- Desculpe sargento, mas vê-se mesmo que é amor!


A partir desse instante tudo voltou à desordem inicial. Comeram, beberam e divertiram-se durante poucas horas até mentalizarem-se que teriam de voltar ao trabalho em breve. Todos abandonaram a estalagem mas apenas Urv se demorou a despedir de Midsat, pois havia um assunto que ainda não tinham tratado: os bandidos que andavam a molestar os arredores da cidade.


- Pois bem Midsat, tu querias saber o terreno que estás a pisar não é?

- Agradecia, não me sentiria à vontade a dar paços em falso.

- Nós não sabemos muito sobre os bandidos, mas posso dizer que sabemos o suficiente. Originalmente assumimos que fosse um novo grupo que estivesse a trabalhar nesta região, mas já encontramos algumas inconsistências nessa teoria. Já encontramos caras conhecidas, bandidos com que já nos tínhamos encontrado antigamente.

- Então o que acham que esteja a acontecer? Pode ser algum tipo de aliança entre os vários grupos? – Opinou Midsat.

- Não, é mais que isso. Acho que os bandidos encontraram um líder. Um líder que os juntou. E agora essa cabeça comanda um pequeno exercito de rufias que atormenta os habitantes dos burgos.

- Cortam a cabeça, matam a cobra. Não sabem onde é o esconderijo desse tal líder.

- Não é assim tão fácil Midsat. Para já, não sabemos se esse líder se quer existe. E o esconderijo. Eu pagaria uma boa moeda para saber onde esse sitio existe. Sabemos que é algures na floresta a este daqui, não sabemos é exactamente onde.

- Estou a entender. – Afirmou Midsat pensativo. – Não vejo como possa ajudar muito mais e também não vos quero manter afastados do vosso serviço muito mais tempo.

- Não tens que te preocupar. – Assegurou Urv estendendo a mão a Midsat. – Até uma próxima altura.


Feitas as despedidas, os guardas afastaram-se de Midsat em direcção ao exterior. Ainda fariam uma ultima inspecção ao povoado para descobrir se mais alguém tinha problemas com os bandidos. Posto isto Midsat decidiu voltar para o Dragão Vermelho na esperança de encontrar Lainos a fim de o questionar em relação às ervas que a condessa lhe tinha pedido. No entanto quando entrou no estabelecimento deparou-se apenas com Slosa e as suas filhas a limpar o recinto.

Colector de corações

Parte 4

Após prestar o seu respeito à Deusa, Midsat retirou do bolso um lenço vermelho e atou à volta do pulso. Esta era a marca que ele tinha de usar para o intermediário o encontrar.
Não passou muito tempo até um homem se sentar ao seu lado. Era mais alto que Midsat, tinha grandes músculos e uma expressão severa. Estava vestido numa armadura de guerreiro e trazia o brasão da cidade, mas as cores não eram dela, possivelmente seria um guarda privado. O seu cabelo era curto, loiro e forte, o seu rosto estava marcado com uma cicatriz que apenas por pouco lhe falhou o olho. Os olhos castanhos fecharam e baixou a cabeça em prece, passado um instante ele levantou a cabeça e ainda de olhos fechados pronunciou-se:

- Ao menos és devoto.
- Assumo que seja o meu patrono.
- Não. – Respondeu o homem calmamente. – Mas sou eu que o vou levar a ela.

Sem oferecer outra palavra, Midsat deslocou-se para o exterior do templo, sendo seguido pelo guarda.

- O meu nome é Tarne. Capitão da guarda do Palácio de Revelette.

Midsat hesitou ao ouvir o seu nome. Tinha sido mencionado no dia anterior mas possivelmente seria apenas coincidência.

- Da condessa. Então é ela que contratou a Mão Negra.
- Sim. Pelo que parece ela tem necessidade dos vossos… – O capitão fez uma pequena pausa e suspirou mostrando-se pouco à vontade com o assunto. - … Serviços. Por qualquer razão abandonada por Arana.

Os palácios dos nobres localizavam-se geralmente afastados da cidade, e este não era nenhuma excepção. Saíram pelo portão Este e seguiram para norte. O aspecto era sempre o mesmo: casas habitadas por cultivadores e pastores e imensos campos de plantações espalhados pelas planícies. Eventualmente, o terreno entrou em mudança. As casas deram lugar a árvores e vegetação, mas contrariamente ao aspecto das habitações, o caminho passou de um simples trilho de terra para um exuberante calçado de mármore, e à distância Midsat conseguiu vislumbrar um belo palácio. As árvores tinham se adensado, mas onde o palácio marcava a sua existência, estava uma pequena clareira que deixava os frágeis raios da manhã entrarem e iluminarem a superfície da entrada, também esta feita em mármore. Havia uma pequena parede de pedra que delimitava o terreno dos condes e dentro dela vários serventes tratavam de uma horta de tamanho respeitável, a qual parecia suficiente para alimentar a pequena população deste pequeno palácio.
Tarne e Midsat entraram dentro do território e deslocaram-se para a entrada do palácio. A porta de entrada era colossal e feita de madeira escura, reforçada com aço. Tarne bateu duas vezes com o punho pesado na porta, e passado uns instantes esta abriu-se.
Para surpresa de Midsat do outro lado da entrada do palácio a face que os recebeu não lhe era desconhecida, o olhar negro sobressaltado, o sorriso nervoso fizeram Midsat recordar-se do anoitecer e aperceber-se que os dois Tarne eram somente um. Desta vez a rapariga não tinha um rapaz a passear na sua mão, mas sim uma bebé enroscada nos seus braços a fita-lo de olhos bem abertos. Tarne mostrou um grande sorriso ao vê-la e depois pronunciou-se com deleite na voz:

- Ah. Menina Delena. Ainda bem que é você. Prepare-se, pois temos de ir vender os mantimentos extra. Mas antes disso, podia levar este senhor para os aposentos da condessa?
- Com certeza senhor Tarne. – Concordou a rapariga com uma pequena vénia. – Acompanhe-me senhor.

Tarne ficou à porta lançando um olhar de suspeita a Midsat enquanto que os dois se deslocaram para dentro do palácio. O corredor de entrada era simples: paredes de pedra onde estavam penduradas pequenas velas que iluminavam o caminho. Portas e chão feitos aparentemente da mesma madeira. Mas ao saírem do corredor e entrarem no salão, o esplendor do palácio dos Revelette finalmente mostrou-se aos olhos de Midsat. Duas escadarias em caracol feitas em mármore convergiam numa única saída no topo do primeiro andar. Ricas mobílias feitas de madeira, adornadas com vários detalhes meticulosamente esculpidos enfeitavam as paredes, onde eram exibidas delicadas porcelanas, belas tapeçarias e exuberantes jóias. Dois grandes candelabros e várias janelas situadas no primeiro andar iluminavam todo o interior com raios de sol e luz de velas. Entre as duas escadas estava uma porta que saltava à vista, velha, usada e com uma grande, ferrugenta fechadura e foi em direcção a ela que Delena se deslocou.

- De quem é a bebé? – Perguntou Midsat.

Delena sorriu e acariciou o cabelo delicado da menina nos seus braços respondendo-lhe:

- É filha da senhora da casa, o seu nome é Elza.
- A descendente de Revelette. Deve ser uma honra cuidar dela.
- É. – Respondeu a serva com um sorriso. – A minha senhora diz que mais ninguém nesta casa é apto a cuidar da menina para alem de mim.

Cuidadosamente, para não deixar a menina cair dos seus braços, Delena retirou uma chave do bolso do seu avental e meteu-a na fechadura. A porta abriu-se com um violento ranger mostrando um pequeno e escuro túnel com tecidos roxos pendendo do tecto.

- Teremos de nos separar aqui. – Falou Delena com um sorriso na cara mas sem fazer contacto com os olhos. – A senhora pediu-me para fazer o resto do caminho sozinho. E não se preocupe, é só seguir em frente.
- Com certeza menina. Obrigado pela companhia. – Anuiu Midsat com uma pequena vénia com a cabeça.

Havia algo estranho que Midsat não conseguia entender, uma atracção bizarra que ele sentia por aquela rapariga. Era uma criatura frágil e simples mas mesmo assim capturava a atenção.
Quando Midsat passou pela porta, o olhar de Delena não abandonou a figura de Midsat até ele desaparecer por entre o labirinto de sedas púrpura.
O túnel na realidade era somente entrada para uma escadaria que levava até à cave. Descer por entre os tecidos não era muito propício ao equilíbrio, mas Midsat conseguiu mantê-lo e descer até o ultimo degrau. Lá, em vez de uma porta estava um arco adornado por runas e o que estava para alem dele encontrava-se ocultado por um último véu. Para lá dessa ultima cortina, as paredes da cave estavam forradas com estantes cheias de pergaminhos, livros, frascos com ervas, minerais e outros objectos de alquimia e magia. Um perfume embriagante inundava a sala provindo de varias velas aromáticas espalhadas pelo chão e estantes. E no centro de tudo com uma presença imponente estava a condessa: uma bela mulher de cabelos loiros, encaracolados e sedosos caindo delicadamente sobre os seus ombros que o seu vestido deixava a descoberto. Sua pele branca não continha um único sinal de imperfeição e parecia brilhar, reflectindo a luz das inúmeras velas. A gola alta cobria-lhe o pescoço e o resto do vestido colava-se ao corpo de uma maneira quase íntima. A condessa teria obviamente um espartilho vestido, pois a sua silhueta cingia drasticamente na cintura antes de se abrir na voluptuosidade que a sua saia lhe dava. Assim que Midsat passou a cortina, foi presenteado com o seu sorriso branco que apareceu por entre um par de lábios rosados, acompanhado por uma risada jovial e os seus olhos azuis que brilhavam como jóias.
Ela pousou o livro que segurava e graciosamente sentou-se numa poltrona que tinha perto. Elevou a mão em direcção de Midsat e com uma voz doce e sedutora chamou por ele:

- Midsat Delron. É um prazer tê-lo aqui.
- Um prazer vê-la a você senhora. – Respondeu-lhe Midsat segurando e beijando a sua mão.
- Pela Deusa. Tão bem educado. – Admirou-se a condessa, levando uma mão há boca para esconder o quando se mostrava agradada. – As últimas vezes que usei os serviços da vossa ordem os seus companheiros nunca foram tão galãs. O meu nome é Elizia Revelette.
- Agradeço o elogio senhora Revelette, mas gostaria de saber sobre o meu trabalho.
- Claro que sim meu caro. – Anuiu a condessa, erguendo-se da sua poltrona. Em seguida dedicou a sua atenção às várias estantes que adornavam o seu covil. No entanto a sua suavidade de movimentos e a sua perfeição estética tinham causado uma quase hipnose a Midsat, que seguia atentamente os movimentos da soberana daquele palácio. Finalmente ela acabou por retirar um livro e não tardou em mostrar a Midsat uma página com a ilustração de um cristal. – Ithil en Aran. A Lua de Arana. É isto que procuro.
- Mas é só um cristal, se é só um tesouro porque não contratou um… - Midsat fez uma breve pausa rindo-se para si próprio, enquanto que o olhar brilhante de Elizia mantinha-se focado na sua cara. - … Um profissional na arte de adquirir tesouros.
- Sim, podia. Mas esses, profissionais, como você tão bem expôs, não são os melhores em entender maneiras ou a manter sigilo.
- Mas senhora, com todo o respeito, porque não usar seus guardas? Porquê recorrer à ordem num trabalho tão trivial? Para alem do mais, os nossos serviços não são baratos.
- Meu caro Midsat Delron. – Interpôs a condessa colocando uma mão sobre o peito de Midsat e aproximando-se perigosamente. – O trabalho não é assim tão trivial, de certo que haverá trabalho para… as suas competências especiais. E para alem disso, os meus guardas podem ser bons soldados, mas apesar da sua idade, Tarne ainda é inocente nos aspectos da vida e há coisas que vão para lá da sua compreensão.

Midsat manteve-se apreensivo enquanto a mão da condessa persistia no seu peito. Mas os olhos safira continuaram cravados em Midsat sem sinal de aperceberem o desconforto dele, e assim mantiveram-se até a condessa calmamente afastar-se, retirando a mão de cima do peito de Midsat, um dedo de cada vez.
Engolindo a seco e como se sentisse que um peso acabava de ser retirado do seu estômago, Midsat sentiu-se desconfortável e ligeiramente tonto.
- Mas por agora ainda não é tempo de colher a lua. – Prosseguiu a condessa. – Precisará de ser no tempo certo. Agora necessito que faça outra coisa por mim.

A condessa retirou um papel de uma prateleira e apresentou-o a Midsat. Tinha nomes e as quantidades de varias ervas.

- Daqui a três dias traga-me esses ingredientes e poderemos passar à outra fase.