Colector de corações

Parte 2

Pelo caminho o mercador contou um pouco da sua história. Chamava-se Lainos e fazia o caminho entre Mireti e Lazindur constantemente. Os seus produtos eram especializados, como ele gostava de dar ênfase e por isso ele queria dizer que na sua banca não se encontravam somente produtos das duas cidades, o que ele fazia era comprar objectos feitos por homens e mulheres que viviam nas aldeias e que não tinham possibilidades de se deslocar até aos grandes centros de comércio. Isso podia explicar a sua mercadoria, mas não explicava o punhal, era demasiado rico e bem trabalhado para ter sido fabricado por um simples artesão.

A cidade era uma tapeçaria de ruas e vielas muito similares que tornava confusa a orientação, apesar de haver uma característica que mostrou que os dois tinham avançado na cidade. O seu encanto e grandeza tinham desaparecido algures no caminho.
Como o mercador tinha mencionado eles tinham entrado na parte má da cidade, onde o estabelecimento se encontrava situado. As pedras da estrada, tão bem conservadas no resto da cidade, começavam a faltar, dando espaço a terra e lama. As robustas e belas casas de pedra eram trocadas por fracas casas de madeira, algumas até em colapso, mas sem sinais de estarem abandonadas.
Esta era a outra face da cidade. Onde os pobres se escondiam e os criminosos habitavam, as tais criaturas da noite. Bandidos, ladrões, mercenários e piores. Todos esses eram olhos nos cantos mais escuros desta zona, olhos que seguiam quem caminhava por estas ruas. Midsat era uma nova presença neste território e ele sabia que neste momento todos os grandes predadores os observavam, tentando descobrir se tratavam-se de ameaças, ou presas.

A estalagem apareceu na escuridão como um farol que os chamava para segurança. A entrada estava bem iluminada com tochas e pintada com arranjos de flores. Por cima da porta uma grande tabuleta com o seu nome e a pintura de um dragão vermelho enrolado sobre si próprio apresentava a estalagem. Na porta estavam dois homens armados, de guarda e se restassem duvidas, as cabeças rapadas e adornadas com tatuagens eram o ultimo sinal que se tratavam de mercenários. À frente da estalagem estava um pequeno grupo de pessoas que conversavam alegremente à luz de uma fogueira. O seu aspecto não diferenciava muito do dos outros que Midsat tinha encontrado até ali. Mal vestidos e imundos, muito provavelmente seriam bandidos comuns.
A conversa dessas pessoas parou à medida que Midsat e Lainos se foram aproximando, mas eles não foram a causa desse repentino silencio, foi sim alguém que saiu da estalagem. Estava coberta numa leve armadura do cabedal e com um capuz ocultando-lhe a cabeça. Desceu as pequenas estradas à porta da estalagem com uma delicadeza feminina e começou a subir a rua no sentido dos dois recém chegados e enquanto que Midsat observava com curiosidade o ser que se deslocava na sua direcção, o resto dos presentes, inclusive os guardas, observava-a com apreensão e por sua parte, Lainos tinha algo mais marcado na cara, algo que se assemelhava com rancor. Quando ela passou ao lado de Midsat inclinou ligeiramente a cabeça. O capuz ocultou-lhe o olhar, mas os olhos cobertos pela sua sombra cruzaram-se com os de Midsat e os seus lábios finos formaram um sorriso. Quando ela afastou-se para a escuridão da noite, o grupo perto da fogueira retomou a sua conversa e os guardas voltaram a uma pose descuidada. Lainos parou de andar e falou para Midsat:

- Não te metas nisso rapaz.
- Quem é ela?
- É uma víbora. Se te chegas perto vais acabar com o veneno dentro de ti.

O exterior do estabelecimento já era simpático mas apenas uma sombra do interior. Várias mesas encontravam-se dispostas pela sala, cada uma com uma vela comprida davam um brilho acolhedor ao espaço dos clientes. Nas paredes estavam vários candeeiros a óleo, acompanhados por tapeçarias a vermelho, branco e azul que iluminavam e davam alguma cor o resto do estabelecimento. Perto das mesas, duas raparigas de aspecto jovem iam recebendo pedidos, enquanto que ao lado da escadaria que levava para o segundo andar, encontrava-se um balcão onde outras duas raparigas acompanhadas por uma senhora aparentemente mais velha recebiam pedidos e serviam bebidas directamente no balcão. A mulher no meio das raparigas aparentava ser bem mais velha mas mantinha uma presença e aspecto jovial. A sua cara tinha rugas bem marcadas nos cantos dos lábios, outras nos olhos e umas menores espalhadas pela cara, mas essas encontravam-se disfarçadas por maquilhagem. Ela usava um vestido vermelho justo, com um decote ousado onde o seu cabelo negro encaracolado caía suavemente. Ela ajudava as suas criadas com uma expressão calma e controladora, com um sorriso pequeno e simples. Mas quando viu Lainos a passar pela porta de entrada o seu sorriso cresceu. Ao aproximar-se do balcão a mulher estendeu-lhe os braços.

- Lainos! Como é bom ver-te! – Exclamou a senhora quando Lainos lhe agarrou nas mãos.
- Tu dizes isso todas as vezes que entro por aquela porta Slosa. Começo a achar que me mentes. – Respondeu o mercador com um sorriso nos lábios.
- Mas eu alguma vez menti a alguém? Quanto mais a um dos meus mais velhos clientes. – Ela olhou de esguelha para Midsat e voltando a ficar o seu amigo prosseguiu. – Ainda por cima trazes-me nova clientela. Quem é este belo rapaz?
- O seu nome é Midsat. – Apresentou Lainos largando as mãos a Slosa. – O rapaz chegou hoje à cidade e eu não pude aconselhar-lhe outro lugar para ficar.
- Então deixa-me dar-te as boas vindas ao meu humilde estabelecimento, Midsat. Este é o Dragão Vermelho, o pedaço de cor e refugio para os cansados neste canto negro da cidade.
- É uma honra senhora. – Respondeu Midsat fazendo uma vénia com a cabeça.
Enquanto Slosa e Midsat trocavam comprimentos, Lainos sentou-se ao balcão e passando uma mão pela barba, olhava pensativo para dona da estalagem. Slosa reparou nisso, passando a inquiri-lo.
- Algo na tua mente velho amigo.
O mercador não respondeu antes respirar fundo, como se não estivesse confortável com o assunto.
- Eu vi a Leiva a sair daqui. Ela está a causar-te alguns problemas?
- Oh querido Lainos, não te preocupes. A Princesa sabe melhor do que armar confusões aqui.
- Então o que essa víbora estava a fazer aqui?
- Nada que necessites de te preocupar. – Assegurou Slosa, olhando em seu redor. – De qualquer maneira, vocês devem estar cansados e com fome. Eu vou ordenar as meninas para vos preparar algo.

A noite passou rapidamente. Como a madame Slosa disse a Midsat: “O Dragão Vermelho era o buraco da cidade com mais cor do império. E haveria com certeza algo que o interesse.”. E de facto, havia muita escolha, um grupo de bardos tocavam e cantavam para animar o ambiente. Havia vários jogos de azar disponíveis para qualquer viajante e muita informação para ser descoberta para quem falasse com as pessoas certas.
Midsat ficou a saber que o Dragão Vermelho estava sob a protecção de uma companhia de mercenários chamados “Lanças de Osso”, os rumores que circulavam em torno deles eram que o líder dos mercenários tinha uma divida de sangue para com Slosa e a maneira que ela tinha decidido ser paga, foi como protecção deste estabelecimento. Slosa era mulher segura e alegre, andavam sempre de queixo erguido, orgulhosa da sua vida e das suas conquistas. Midsat também descobriu que as quatro raparigas que trabalhavam sob a alça de Slosa eram suas filhas, não de sangue, mas as quatro eram órfãs que Slosa tinha adoptado. Apesar de alguns pensarem que Slosa apenas se tinha aproveitado da condição das raparigas para as pôr a trabalhar para si, as coisas não pareciam dessa maneira. Ela oferecia-lhes tudo o que uma mãe poderia e Lainos também era da opinião que as raparia não teriam um melhor futuro nas mãos de outra pessoa.

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Como ainda não conhecia o suficiente da cidade para reunir informação ou aventurar-se à noite pelas suas ruas preferiu retirar-se cedo.
A manhã chegou com o chilrear de pássaros e os primeiros raios de sol a queimar a cara de Midsat. A cama era confortável, os cobertores incrivelmente aconchegantes e quentes, um luxo que Midsat não estava habituado a usufruir. Levantou-se e olhou pela janela. Os raios de sol espreitavam timidamente por cima do horizonte, mas já iluminavam a cidade. E mais uma vez ele podia ver a cidade no seu esplendor. As casas de pedra brilhavam como a muralha da cidade, até o sítio onde ele se encontrava parecia menos opressivo. Os caminhos escuros e os becos negros estavam completamente iluminados pelo sol. Dessa janela via-se pessoas em todos os cantos da cidade e até era possível ver-se um caminho do Dragão Vermelho até ao templo de Anara. Do dia para a noite e da noite para o dia, a cidade ganhara cores completamente diferentes.
Depois de se vestir, Midsat desceu as escadas para o salão. Os guardas tinham mudado de turno mas continuavam no mesmo número. Já as empregadas e clientes tinham reduzido. Empregadas só estavam duas, uma que preparava bebidas e refeições e outra que servia os poucos clientes presentes. Midsat sentou-se numa mesa e foi rapidamente atendido por uma das filhas de Slosa.

- A noite foi boa, senhor? – Perguntou a rapariga puxando a sua longa franja morena para trás da orelha.
- Foi o melhor sono da minha vida, obrigado.
- Então e o que pensa tomar para começar o dia?
- Não sei. A menina que escolha.

A rapariga ergueu-se, sorriu e depois foi ter com a sua irmã em passo acelerado. Não tardou muito até ela voltar trazendo um tabuleiro com ovos, presunto e pão. Midsat deliciou-se com o modesto manjar enquanto que a rapariga mantinha-se em pé ao seu lado olhando para ele com uma expressão contemplativa nos olhos.

- Como é o mundo lá fora. - Questionou a rapariga.
- Como assim? - Perguntou Midsat, sentindo-se confuso.
- Nunca sai de Lazindur. E ver todas as semanas caras novas tortura-me. – A rapariga fez uma pausa, suspirou e fitou o tecto. – Gostava de sair daqui, fugir, correr o mundo.
- Não estás feliz aqui?
- Estou. Claro que estou. Não me podia ter calhado melhor sorte, mas...

Algo a interrompeu antes que pudesse acabar a frase. A porta abriu-se e a mesma figura que Midsat tinha visto a abandonar esse estabelecimento na noite anterior. Após entrar, ela caminhou até à mesa onde Midsat se sentava e com um sinal com a cabeça fez a rapariga afastar-se sem dizer mais alguma palavra. Midsat ficou inquieto quando ela se sentou à sua e frente tirou o capuz deixando finalmente ver a face desta criatura que gerava tanta apreensão e tanto ódio. Não era mais velha que Midsat, a sua pele parecia ter pouco contacto com o sol e possuía um tom pálido. O seu cabelo era loiro com tom claro irreal, era curto, estava preso num rabo-de-cavalo e a franja curta e fina caía em risco ao meio sobre os olhos grandes e negros e tinha uma cicatriz à esquerda da sua cara. O seu sorriso fino mantinha-se o mesmo da noite passada. Os seus olhos mostravam que tinha algo planeado.

- Olá. – Disse ela com uma voz fina e um pouco infantil.

3 comentários:

Nerzhul disse...

A musa entrou-te pelo nariz, não foi?

Também quero esta inspiração...

AJPires disse...

Isto promete

Ars Moriendi disse...

I WANT MOAR!!!