Madalene – Luzes brilhantes e um céu nocturno.

Mais uma noite tinha chegado a Radiance. Eu e a Clarisse preparávamo-nos para fugir à sombra do horário laboral e sermos envoltas pelas doces luzes da noite. Talvez esteja a ser demasiado filosófica, mas quando começo a limar as unhas a minha mente devaneia.

No outro sofá à cabeceira deste estava a Clarisse, numa posição que desafiava o conforto físico, a pintar as unhas dos pés, completamente absorvida pela sua tarefa.

Na televisão passava o noticiário das oito horas, passando a mesma historia mórbida do violador de Radiance. É claro que trata-se de um caso mediático e um perigo para a as mulheres da cidade, mas já è a sexta vez este dia que eu vejo a mesma noticia.


Madalene: Este noticiário já cansa.


A Clarisse manteve-se calada, envolta na sua pintura.


Madalene: Isto só acontece porque a policia faz pouco para o capturar. Cambada de preguiçosos. Oh, desculpa Clarisse.

Clarisse: Não faz mal amiga, eu bem sei que o meu pai é preguiçoso. Mas se te chateia, muda de canal, não temos de estar a ouvir dessas coisas.

Madalene: Bem, as minhas unhas já estão. Passa-me o verniz.

Clarisse: Ainda não acabei, dá-me só mais uns minutos.

Madalene: Se tu tivesses tanta aplicação na faculdade como a arranjar-te tiravas vinte a tudo.

Clarisse: Mas assim perdia tudo o resto que estes anos têm a oferecer.


Não podia discordar com isso. Estávamos no pico da juventude e dispostas a aproveitar todos os momentos que a vida nos lançava.


Clarisse: Achas que estamos em perigo?

Madalene: uh?

Clarisse: O meu pai diz para termos cuidado quando vamos à rua. Ele diz que esse homem é um louco e as raparigas que encontraram mortas... não as mostraram nem às famílias devido ao estado em que estavam.

Madalene: Não achas que o teu pai te anda a dizer demasiadas coisas sobre um caso policial? Se calhar só te está a tentar assustar.

Clarisse: Isso seria mesmo típico dele não seria?

A Clarisse não resistiu a rir-se e eu acompanhei-a na gargalhada. Apesar de ser um tema sério, a verdade é que o pai dela costumava exagerar as coisas para causar medo a este pequeno demónio que ele ainda pensava ser inocente.

Clarisse: Toma lá o verniz.


O noticiário acabara de apresentar outra vitima do violador. As coisas não estavam bonitas para o departamento de policia. Eventualmente enquanto eu pincelava as minhas unhas a Clarisse acabou por dar a sua opinião.


Clarisse: Isto ainda vai piorar antes de ficar melhor.

Madalene: Achas que isso vai acontecer?

Clarisse: Acredito que sim. Soa demasiado pessimista?

Madalene: Yah, nem pareces tu.


Algumas horas depois saímos de casa para nos lançarmos aos bares e discotecas. A noite encontra-se agradavelmente quente, a aragem com aromas estranhos e alguns mais doces provenientes do parque Ectos. Foi uma ideia de Clarisse procurar bares neste lado da cidade e não demorou até encontrar uma nova discoteca para onde me arrastou por um braço.


A musica estava alta e as luzes iluminavam os corpos suados na pista de dança. A fricção entre os corpos gerava uma quantidade infindável de calor humano, a dança frenética não parecia cessar sob os ritmos e ondas musicais e no meio de tudo isto eu estou no balcão parada, sem vontade nenhuma de me juntar ao frenesim musical. Suspirei desencantada olhando para a bebida que tinha na mão. Depois de me preparar tanto, tinha acabado amuada num canto. Suspirei mais uma vez ao ver a Clarisse no meio da multidão de corpos com o seu longo cabelo loiro a balançar ao ritmo da sua figura. Pelo menos ela está a divertir-se. Foi uma boa razão para sorrir.

Um pouco mais tarde, depois de já ter trocado umas palavras com a Clarisse e depois de ela ter voltado à pista de dança, o barman decidiu questionar-me sobre a minha inércia.


Barman: Desde que entraste aqui, que não saíste do balcão. Há algum problema?

Madalene: como sabes que estive este tempo todo aqui?

Barman: Já é o terceiro Sexy Devil que pedes e ainda não te vi a mexer para longe daqui.

Madalene: Com que então tens andado de olho em mim?

Barman: Só tenho é razões para não os meus olhos de ti.


Ri-me timidamente. Não acredito que isto esta a acontecer-me. Não me sinto com vontade nenhuma de entrar nestes tipo de jogos mas também não quero ficar com alternativa.


Madalene: É verdade, mas os teus olhos não são as tuas mãos e essas podiam estar ocupadas em fazer-me outra bebida.

Barman: Não só.

Madalene: Tira esses pensamentos e faz-me outro Sexy Devil.

Barman: tens a certeza? Tu sabes a quantidade de vodka que isto bem?

Madalene: Estou bem ciente. Agora fecha esses lábios e trabalha.


Isto até pode correr bem. Quem sabe até me calhe um pouco diversão mais logo, assumindo que a Clarisse tenha um forte interesse de passar a noite na casa do pai, ou passa-la acordada.

E eu própria acabei de mandar as minhas esperanças abaixo. Bom trabalho Madalane.


Barman: Mas então, porque não sais daqui? Por a tua cara assumo que seja por algo mais que o rapaz giro que te está a fazer as bebidas.

Madalene: Não sei. Desde que sai à rua que fiquei murcha.

Barman: O que estás para ai a dizer? Está uma noite boa e já olhaste para o céu?

Madalene: Sim, o céu está bonito.


Não consegui dizer mais nada, foi como se as palavras prendessem na minha garganta e a língua enrolasse. Não sabia o que mais dizer e não conseguia o fazer mais. Foi como se a minha mente se perdesse nas estrelas. Tentei tirar o nó da minha garganta com a bebida mas não funcionou. O que é que se passa comigo.

Felizmente tive a maravilhosa interrupção da Clarisse que me tirou tudo o que me poderia paralisar da cabeça.


Clarisse: Amiga, desculpa mas temos de nos ir embora. Torci o pé.

Madalene: Então apoia-te aqui. E vamos já embora.


Pus o dinheiro em cima do balcão e depois, com a Clarisse agarrada ao meu ombro fomos embora dali. Apenas com uma pequena interrupção.


Barman: Hei! Não nem sei o teu nome.

Madalene: Isso é porque eu não te o dei.


Fomos outra vez para a noite, mas agora era de volta a casa. E carregar uma miúda com mais uns 5cm que eu, ainda por cima em saltos altos e com a quantidade de vodka que eu tenho em cima não é algo fácil.

Caminhámos por um bom bocado até a Clarisse pedir para parar. Para ficar mais confortável e não forçar o pé, levei-a para sentar-se num muro.


Clarisse: Desculpa, mas o meu pé já não aguenta mais.

Madalene: Pára de pedir desculpas. Até parece que me aleijaste.

Clarisse: Ahah. E que tal ires ai a um café buscar uma água.

Madalene: É para já minha senhora.


Com uma vénia trocista. Corri para o café mais próximo e pedi uma água depois de pagar voltei imediata para o local onde tinha deixado a Clarisse mas eu não a via. Ela não podia ter ido muito longe. Procurei em redor mas nada. O meu coração já começava a querer partir as minhas costelas e saltar da caixa torácica até que ouvi um grito abafado vindo de uma viela mais obscura.

Entrei no beco e deparei-me com um homem segurando uma faca, cobrindo a boca da Clarisse com uma mão e com a outra remexia na sua mala. Não pensei e aproximei-me deles berrando.


Madalene: Hei! Larga-a!


O criminoso pôs-se rapidamente atrás da Clarisse usando-a como um escudo humano mas quando viu pela escuridão deve ter-me achado pouca resistência pois começou a rir-se.


Criminoso: Por momentos pensei que estava em problemas. Não passas de uma miúda. E que tal também passares a tua carteira e telemóvel para não termos chatices aqui com a tua amiga.


Cerrei os pulsos com raiva e cerrei os dentes. A faca estava demasiado próxima da garganta da Clarisse e não havia nada que eu pudesse fazer. Vi as lágrimas a cair pela cara da Clarisse e o meu coração ainda bateu mais. Dei um passo mas o agressor tornou o aperto mais intenso.

Mas neste instante, algo aconteceu que ninguém esperava. Luzes brilhantes cruzaram o céu. Uma chuva de estrelas de cores que desafiava a imaginação iluminaram o céu como uma língua de fogo colorida e quando cessou, a minha mente foi assolada por uma imensidade de pensamentos e foi penetrada por uma dor incrível que me forçou a ficar de joelhos. Mas de um momento para o outro a dor cessou e quando me levantei fui movida por uma mão invisível.

Ergui o meu braço em direcção ao malfeitor e semicerrei os meus dedos como se apertasse algo e nesse exacto instante todo o seu corpo ficou tenso, deixando cair a faca. Comecei a avançar em direcção a ele cerrando os meus dedos cada vez mais e vendo a sua agonia a crescer perante os meus olhos. Ergui o meu braço e ele elevou-se no ar. Vi sangue a escorrer-lhe pelo nariz e não quis parar, senti-me viva, senti que podia fazer tudo e neste momento eu iria esmagar este insecto. Apertei-o ainda mais e pareceu-me sentir o seu coração a abrandar na minha mão. Cada vez mais a batida parecia esmorecer até um suspiro.


Clarisse: Madalene, pára!


O grito da Clarisse cortou o meu transe como uma luz pela escuridão. Cai de joelhos novamente, ofegante e com a visão turva, mas não conseguindo dar luz à situação, deambulei até voltar a ter a Clarisse apoiada em mim.

Depois voltamos a andar. Abandonei aquela viela e não olhei para trás, percorremos o resto do caminho até ao apartamento em absoluto silencio e não voltamos a olhar para trás.



Não olhámos para trás…