Colector de corações

Parte 3

- A Princesa. – Assumiu Midsat, recordando-se da conversa que Lainos tinha tido com Slosa.
- Princesa? Por favor. – Desculpou-se a rapariga roubando um pedaço de presunto de Midsat e continuou, mastigando. – Uma rapariga faz um pequeno trabalho, depois continua a fazer uns trabalhos por conta própria e do dia para a noite é intitulada a princesa dos ladrões.

Com essa expressão Midsat sentiu-se elucidado e assim foi explicado o porquê do nome de Princesa e a razão de Lainos não a ter nas suas boas graças. Ela era uma ladra e pela alcunha dada pela população, uma bastante boa, portanto era bastante normal que ladrões e mercadores tinham conflitos de interesse.

- Então diz-me. Estás a gostar de estar por aqui? – Continuou por entre dentadas no presunto que tinha tirado.
- Qual é o teu interesse? – Questionou Midsat sentindo-se pouco á vontade.
- Não sei. Nova cara na cidade, especialmente nestes lados. Para alem disso não pareces ser o comum viajante que passa por esta lixeira. Não, tu és algo mais não és?

A conversa começou a tomar um caminho demasiado inquisitivo. Enquanto falava, os olhos de Leiva não se fixavam em nenhum lugar por vários segundos, mantinha um sorriso constante mesmo enquanto mastigava, falava ou soprava para afastar o seu cabelo dos olhos e apesar ter conservado um ar relaxado e um pouco tolo durante a conversa, havia algo que transparecia no seu olhar. Ela sabia de algo que não queria deixar mostrar e o seu questionário era a sua testemunha.
Ambos ficaram em silencio por um bocado. A Princesa olhava para o fundo da sala acabando de comer o pedaço de presunto que tinha roubado e Midsat mantinha-se imóvel com os olhos postos na criatura enigmática que se sentava à sua frente.

- Vá lá. Tu dizes-me um pouco do que achas dos teus primeiros dias, eu conto-te um pouco da minha estadia e quem sabe mais tarde casamo-nos, temos filhos e vivemos felizes.
- Eu não sei quem tu pensas que és mas esta conversa acabou aqui. – Respondeu Midsat levantando-se abruptamente.

Nesse instante, Leiva agarrou num dos braços de Midsat para impedi-lo de se levantar. Midsat, irado com a atitude da ladra não olhou a meios e desembainhou a sua navalha encostando-a ao pescoço de Leiva. Ela como reflexo retirou também a sua adaga e encostou-a ao estômago de Midsat. Mantiveram-se de olhares cruzados, armas coladas à pele e com a tensão espalhada pelo ar, apenas com um simples detalhe mantinha-se intacto, mesmo com o fio da navalha a tocar na sua garganta, Leiva mantinha o mesmo sorriso.

- O que vem a ser isto? – Gritou Slosa do outro lado da estalagem. – Leiva! Que direito tens tu de arranjar confusão no meu estabelecimento?

Mantendo os olhares cruzados, Midsat e Leiva hesitaram por um bocado antes de voltar a embainhar as armas.

- As minhas desculpas senhora Slosa. – Desculpou-se Midsat fazendo uma pequena vénia à matrona.
- Não precisa de pedir desculpas Midsat. – Respondeu Slosa a Midsat com a sua voz serena. Passando de seguida para um tom que soava a fúria ao falar com Leiva. - Essa concubina de Deraq traz me nada para alem de problemas.
- As crianças só estavam a brincar um bocado. – Troçou Leiva metendo a língua de fora.

Midsat olhou-a de esguelha, a rapariga não tinha um pingo de honradez na sua alma ou na sua fala, até com Slosa brincava. Ela tinhas os olhos postos em Slosa e com as mão atrás das costas balançava nos bicos dos pés, sempre com aquele sórdido sorriso a marcar-lhe o rosto, como cicatriz que já mais desapareceria. Slosa mantinha-se quieta e serena no seu lugar, mas os seus olhos demonstravam que ela lutava contra si própria para controlar a fúria.
Havia palavras no ar não proferidas e algo que escapava à percepção dos menos atentos e uma tensão estranha continuava espalhada pelo ar, mas agora bem mais densa.

- Não senhora Slosa, eu é que tive culpa no sucedido. – Insistiu Midsat. - E irei lhe pagar pelo distúrbio, mas agora estou atrasado para um encontro, terei de sair.
- Oh. É uma pena. – Comentou Leiva piscando um olho a Midsat. – Talvez nos encontremos mais tarde.

Sem interesse em dar resposta à provocação, Midsat saiu a estalagem, mas isso não parou a tensão, muito pelo contrário, ajudou Slosa a deixar o seu controlo desvanecer. Com um tom ríspido ordenou Leiva a segui-la e com um passo acelerado, alimentado pela cólera de Slosa, abandonaram do salão da estalagem em direcção aos aposentos de Slosa. Lá dentro, ela fechou a porta e depois virou a sua atenção e fúria para Leiva, urrando com a cara desfigurada pela fúria.

- Como te atreves a arranjar confusão com os meus hóspedes, no meu próprio estabelecimento?

Mas a expressão de Leiva, essa tinha mudado. O seu sorriso tinha desaparecido no momento em que cruzou a porta e tinha sido trocado por uma expressão sóbria e gélida.

- O que é preferível? Que eu comece a pôr cartazes espalhados pela cidade dizendo “Leiva trabalha para Slosa, dona do Dragão Vermelho”. – Cuspiu Leiva como se fosse um alívio dizer-lhe estas palavras. – E o que seria melhor? Coloca-las por baixo dos cartazes pedindo a minha captura.
- Como te atreves. – Suspirou Slosa fechando os punhos.
- Atrevo-me, sim! Porque é assim que eu trabalho e só por tu estares a pagar-me não quer dizer que tenha de ser simpática para ti, muito pelo contrário, tenho de mostrar que não temos laços nenhuns e isto de me trazeres para aqui dentro é um erro. As pessoas falam.
- Provaste o que pretendias. Agora não voltes a causar desordem na minha casa!
- Não é assim tão fácil. Esse rapaz, esse Midsat. Acho que é um dos teus.
- Como é que sabes? – Questionou Slosa surpresa com as palavras da ladra
- Não sei, mas vocês têm um cheiro característico. E este rapaz tresanda à “Mão Negra”.

Mantendo-se em silencio, Slosa deslocou-se até à janela do seu quarto. Olhou para fora, pensativa e perturbada pois se assim fosse, desconfiava das razões de Midsat para o seu aparecimento aqui. Podia ser só coincidência, mas ela não se podia dar a esse luxo.

- Não tenho a certeza. Mas podia apostar a minha vida como ele é da “Mão Negra”. – Continuou Leiva. – Em relação ao meu trabalho…
- Esquece o outro trabalho! – Interrompeu Slosa. – Isto é mais importante. Trataremos da estátua depois.
- Desculpa, mas eu fui paga para recuperar aquela estátua, não para andar a investigar um rapaz qualquer. – O sorriso voltou à cara de Leiva conforme ela continuou. - A menos que, veja alguma mudança no meu pagamento.
- E quanto te faria mudar de objectivo.
- O dobro seria um bom começo.
- Sua víbora gananciosa. – Cuspiu Slosa por entre tentes fechados.
- Uma rapariga tem de se alimentar.
- Pois bem, terás o teu pagamento. – Acordou Slosa. – E um conselho, para descobrires se ele é mesmo quem tu pensas que é…
- Procuro pela mão negra tatuada no corpo. – Cortou Leiva, deixando a sua empregadora mais uma vez surpresa. – Eu tenho as minhas andanças com criaturas da vossa espécie. Para alem do mais, já vi a tua.
- Como? – Gaguejou.

Vendo que tinha Slosa assustada a ladra limitou-se a sorrir enquanto abria a porta, quando trespassou os limites do quarto ousou dizer:

- Eu gosto de conhecer com quem trabalho ao pormenor.

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A cidade vibrava com vida. Muitos voltavam aos seus trabalhos para manter essa vida acesa diariamente. Guardas patrulhavam as ruas em pequeno número, mercadores de bens essenciais já vendiam os seus produtos. O caminho que Midsat tomara para o templo tinha-o levado por um pequeno mercado, onde era vendida comida e outros produtos para as casas, onde ele se sentiu encantado com o pequeno rebuliço causado pelas mães que arrastavam os filhos de loja em loja para comprar as provisões para as suas casas, as crianças que brincavam umas com as outras e ainda as que estavam agarradas pelas mães faziam caretas tentando soltar-se do aperto das suas progenitoras para juntarem-se á brincadeira. Era um facto que este local pequeno não se comparava à magnitude do distrito mercantil, mas a sua simplicidade aquecia Midsat.
O templo erguia-se majestoso em relação aos outros edifícios. A torre do sino erguia-se sumptuosamente acima de qualquer edifício e acabava numa espiral estendida ao céu. As belas arcadas convidavam os crentes a entrarem. Os jardins em torno do santuário eram graciosos, transbordando de cor e cheiros, tratados meticulosamente pelas sacerdotisas. Em frente à entrada e por baixo das arcadas estavam vários indivíduos, muito possivelmente procurando curas para as maleitas que os afligiam. Maleitas, essas que as devotas de Arana tentavam tratar com as melhores das suas capacidades.
O interior era bastante modesto. Várias velas iluminavam o local pois a luz que passavam pelas brechas que eram usadas como janelas era insignificante para iluminar o interior. Bancos de madeira estavam alinhados desde a entrada até o altar que tinha um manto branco e bordado com padrões vermelhos por cima. E atrás do altar estava uma estátua de Arana, de joelhos e de braços abertos, olhos em direcção ao céu e duas grandes asas abertas atrás dos braços.
Não se encontravam muitas pessoas dentro da igreja, apenas o sacerdote que limpava o chão e uns poucos crentes espalhados pelos bancos. Midsat sentou-se num dos bancos e ofereceu uma prece a Arana. Tinha sido ensinado a respeitar a Deusa e assim o fazia. Não esperava que milagres acontecessem, mas o respeito por Arana não devia ser perdido.

Colector de corações

Parte 2

Pelo caminho o mercador contou um pouco da sua história. Chamava-se Lainos e fazia o caminho entre Mireti e Lazindur constantemente. Os seus produtos eram especializados, como ele gostava de dar ênfase e por isso ele queria dizer que na sua banca não se encontravam somente produtos das duas cidades, o que ele fazia era comprar objectos feitos por homens e mulheres que viviam nas aldeias e que não tinham possibilidades de se deslocar até aos grandes centros de comércio. Isso podia explicar a sua mercadoria, mas não explicava o punhal, era demasiado rico e bem trabalhado para ter sido fabricado por um simples artesão.

A cidade era uma tapeçaria de ruas e vielas muito similares que tornava confusa a orientação, apesar de haver uma característica que mostrou que os dois tinham avançado na cidade. O seu encanto e grandeza tinham desaparecido algures no caminho.
Como o mercador tinha mencionado eles tinham entrado na parte má da cidade, onde o estabelecimento se encontrava situado. As pedras da estrada, tão bem conservadas no resto da cidade, começavam a faltar, dando espaço a terra e lama. As robustas e belas casas de pedra eram trocadas por fracas casas de madeira, algumas até em colapso, mas sem sinais de estarem abandonadas.
Esta era a outra face da cidade. Onde os pobres se escondiam e os criminosos habitavam, as tais criaturas da noite. Bandidos, ladrões, mercenários e piores. Todos esses eram olhos nos cantos mais escuros desta zona, olhos que seguiam quem caminhava por estas ruas. Midsat era uma nova presença neste território e ele sabia que neste momento todos os grandes predadores os observavam, tentando descobrir se tratavam-se de ameaças, ou presas.

A estalagem apareceu na escuridão como um farol que os chamava para segurança. A entrada estava bem iluminada com tochas e pintada com arranjos de flores. Por cima da porta uma grande tabuleta com o seu nome e a pintura de um dragão vermelho enrolado sobre si próprio apresentava a estalagem. Na porta estavam dois homens armados, de guarda e se restassem duvidas, as cabeças rapadas e adornadas com tatuagens eram o ultimo sinal que se tratavam de mercenários. À frente da estalagem estava um pequeno grupo de pessoas que conversavam alegremente à luz de uma fogueira. O seu aspecto não diferenciava muito do dos outros que Midsat tinha encontrado até ali. Mal vestidos e imundos, muito provavelmente seriam bandidos comuns.
A conversa dessas pessoas parou à medida que Midsat e Lainos se foram aproximando, mas eles não foram a causa desse repentino silencio, foi sim alguém que saiu da estalagem. Estava coberta numa leve armadura do cabedal e com um capuz ocultando-lhe a cabeça. Desceu as pequenas estradas à porta da estalagem com uma delicadeza feminina e começou a subir a rua no sentido dos dois recém chegados e enquanto que Midsat observava com curiosidade o ser que se deslocava na sua direcção, o resto dos presentes, inclusive os guardas, observava-a com apreensão e por sua parte, Lainos tinha algo mais marcado na cara, algo que se assemelhava com rancor. Quando ela passou ao lado de Midsat inclinou ligeiramente a cabeça. O capuz ocultou-lhe o olhar, mas os olhos cobertos pela sua sombra cruzaram-se com os de Midsat e os seus lábios finos formaram um sorriso. Quando ela afastou-se para a escuridão da noite, o grupo perto da fogueira retomou a sua conversa e os guardas voltaram a uma pose descuidada. Lainos parou de andar e falou para Midsat:

- Não te metas nisso rapaz.
- Quem é ela?
- É uma víbora. Se te chegas perto vais acabar com o veneno dentro de ti.

O exterior do estabelecimento já era simpático mas apenas uma sombra do interior. Várias mesas encontravam-se dispostas pela sala, cada uma com uma vela comprida davam um brilho acolhedor ao espaço dos clientes. Nas paredes estavam vários candeeiros a óleo, acompanhados por tapeçarias a vermelho, branco e azul que iluminavam e davam alguma cor o resto do estabelecimento. Perto das mesas, duas raparigas de aspecto jovem iam recebendo pedidos, enquanto que ao lado da escadaria que levava para o segundo andar, encontrava-se um balcão onde outras duas raparigas acompanhadas por uma senhora aparentemente mais velha recebiam pedidos e serviam bebidas directamente no balcão. A mulher no meio das raparigas aparentava ser bem mais velha mas mantinha uma presença e aspecto jovial. A sua cara tinha rugas bem marcadas nos cantos dos lábios, outras nos olhos e umas menores espalhadas pela cara, mas essas encontravam-se disfarçadas por maquilhagem. Ela usava um vestido vermelho justo, com um decote ousado onde o seu cabelo negro encaracolado caía suavemente. Ela ajudava as suas criadas com uma expressão calma e controladora, com um sorriso pequeno e simples. Mas quando viu Lainos a passar pela porta de entrada o seu sorriso cresceu. Ao aproximar-se do balcão a mulher estendeu-lhe os braços.

- Lainos! Como é bom ver-te! – Exclamou a senhora quando Lainos lhe agarrou nas mãos.
- Tu dizes isso todas as vezes que entro por aquela porta Slosa. Começo a achar que me mentes. – Respondeu o mercador com um sorriso nos lábios.
- Mas eu alguma vez menti a alguém? Quanto mais a um dos meus mais velhos clientes. – Ela olhou de esguelha para Midsat e voltando a ficar o seu amigo prosseguiu. – Ainda por cima trazes-me nova clientela. Quem é este belo rapaz?
- O seu nome é Midsat. – Apresentou Lainos largando as mãos a Slosa. – O rapaz chegou hoje à cidade e eu não pude aconselhar-lhe outro lugar para ficar.
- Então deixa-me dar-te as boas vindas ao meu humilde estabelecimento, Midsat. Este é o Dragão Vermelho, o pedaço de cor e refugio para os cansados neste canto negro da cidade.
- É uma honra senhora. – Respondeu Midsat fazendo uma vénia com a cabeça.
Enquanto Slosa e Midsat trocavam comprimentos, Lainos sentou-se ao balcão e passando uma mão pela barba, olhava pensativo para dona da estalagem. Slosa reparou nisso, passando a inquiri-lo.
- Algo na tua mente velho amigo.
O mercador não respondeu antes respirar fundo, como se não estivesse confortável com o assunto.
- Eu vi a Leiva a sair daqui. Ela está a causar-te alguns problemas?
- Oh querido Lainos, não te preocupes. A Princesa sabe melhor do que armar confusões aqui.
- Então o que essa víbora estava a fazer aqui?
- Nada que necessites de te preocupar. – Assegurou Slosa, olhando em seu redor. – De qualquer maneira, vocês devem estar cansados e com fome. Eu vou ordenar as meninas para vos preparar algo.

A noite passou rapidamente. Como a madame Slosa disse a Midsat: “O Dragão Vermelho era o buraco da cidade com mais cor do império. E haveria com certeza algo que o interesse.”. E de facto, havia muita escolha, um grupo de bardos tocavam e cantavam para animar o ambiente. Havia vários jogos de azar disponíveis para qualquer viajante e muita informação para ser descoberta para quem falasse com as pessoas certas.
Midsat ficou a saber que o Dragão Vermelho estava sob a protecção de uma companhia de mercenários chamados “Lanças de Osso”, os rumores que circulavam em torno deles eram que o líder dos mercenários tinha uma divida de sangue para com Slosa e a maneira que ela tinha decidido ser paga, foi como protecção deste estabelecimento. Slosa era mulher segura e alegre, andavam sempre de queixo erguido, orgulhosa da sua vida e das suas conquistas. Midsat também descobriu que as quatro raparigas que trabalhavam sob a alça de Slosa eram suas filhas, não de sangue, mas as quatro eram órfãs que Slosa tinha adoptado. Apesar de alguns pensarem que Slosa apenas se tinha aproveitado da condição das raparigas para as pôr a trabalhar para si, as coisas não pareciam dessa maneira. Ela oferecia-lhes tudo o que uma mãe poderia e Lainos também era da opinião que as raparia não teriam um melhor futuro nas mãos de outra pessoa.

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Como ainda não conhecia o suficiente da cidade para reunir informação ou aventurar-se à noite pelas suas ruas preferiu retirar-se cedo.
A manhã chegou com o chilrear de pássaros e os primeiros raios de sol a queimar a cara de Midsat. A cama era confortável, os cobertores incrivelmente aconchegantes e quentes, um luxo que Midsat não estava habituado a usufruir. Levantou-se e olhou pela janela. Os raios de sol espreitavam timidamente por cima do horizonte, mas já iluminavam a cidade. E mais uma vez ele podia ver a cidade no seu esplendor. As casas de pedra brilhavam como a muralha da cidade, até o sítio onde ele se encontrava parecia menos opressivo. Os caminhos escuros e os becos negros estavam completamente iluminados pelo sol. Dessa janela via-se pessoas em todos os cantos da cidade e até era possível ver-se um caminho do Dragão Vermelho até ao templo de Anara. Do dia para a noite e da noite para o dia, a cidade ganhara cores completamente diferentes.
Depois de se vestir, Midsat desceu as escadas para o salão. Os guardas tinham mudado de turno mas continuavam no mesmo número. Já as empregadas e clientes tinham reduzido. Empregadas só estavam duas, uma que preparava bebidas e refeições e outra que servia os poucos clientes presentes. Midsat sentou-se numa mesa e foi rapidamente atendido por uma das filhas de Slosa.

- A noite foi boa, senhor? – Perguntou a rapariga puxando a sua longa franja morena para trás da orelha.
- Foi o melhor sono da minha vida, obrigado.
- Então e o que pensa tomar para começar o dia?
- Não sei. A menina que escolha.

A rapariga ergueu-se, sorriu e depois foi ter com a sua irmã em passo acelerado. Não tardou muito até ela voltar trazendo um tabuleiro com ovos, presunto e pão. Midsat deliciou-se com o modesto manjar enquanto que a rapariga mantinha-se em pé ao seu lado olhando para ele com uma expressão contemplativa nos olhos.

- Como é o mundo lá fora. - Questionou a rapariga.
- Como assim? - Perguntou Midsat, sentindo-se confuso.
- Nunca sai de Lazindur. E ver todas as semanas caras novas tortura-me. – A rapariga fez uma pausa, suspirou e fitou o tecto. – Gostava de sair daqui, fugir, correr o mundo.
- Não estás feliz aqui?
- Estou. Claro que estou. Não me podia ter calhado melhor sorte, mas...

Algo a interrompeu antes que pudesse acabar a frase. A porta abriu-se e a mesma figura que Midsat tinha visto a abandonar esse estabelecimento na noite anterior. Após entrar, ela caminhou até à mesa onde Midsat se sentava e com um sinal com a cabeça fez a rapariga afastar-se sem dizer mais alguma palavra. Midsat ficou inquieto quando ela se sentou à sua e frente tirou o capuz deixando finalmente ver a face desta criatura que gerava tanta apreensão e tanto ódio. Não era mais velha que Midsat, a sua pele parecia ter pouco contacto com o sol e possuía um tom pálido. O seu cabelo era loiro com tom claro irreal, era curto, estava preso num rabo-de-cavalo e a franja curta e fina caía em risco ao meio sobre os olhos grandes e negros e tinha uma cicatriz à esquerda da sua cara. O seu sorriso fino mantinha-se o mesmo da noite passada. Os seus olhos mostravam que tinha algo planeado.

- Olá. – Disse ela com uma voz fina e um pouco infantil.

Fogo

E eu que pensei que aquele fogo não me podia tocar. Pensei que não seria arrastado para aquele inferno.
E eu que errei, que lamentei o sonho que me foi posto à frente sem lhe poder tocar pois era quente – quente demais – queimava-me os dedos.
Mas a minha mão alcançou para alem das chamas, para alem da dor e para alem do sonho.

Era frio, constante e bom. Sabia a aquele rebuçado acabado de desenrolar, tão doce a derreter-se na língua e tão áspero a passar pelos lábios. Ah, como eu adoro sentir os cortes fragmentados entre o físico e o psíquico dilacerarem-me como um animal morto preparado a entrar no fogo!

Mas não. Cara é a paixão que afoga esse sentimento. E o doce não desaparece antes de ser engolido.

E eu que pensei que não me iria queimar. E eu que pensei que apenas os meus dedos sentiram o calor antes de lhe tocar.

Todo eu em fogo, em loucura e a vontade de dilacerar a carne. Arrancar os olhos para nunca mais ver a fonte que me faz levar à loucura.

Agora quero saber! Sim porque o meu direito não morre quando eu perco a doçura que se desfez na minha garganta! Quero saber, o quanto te vais queimar? Porque eu já não ardo mais. Um braço já chega de sacrifício. O meu corpo já è loucura. A minha alma…

A minha alma, essa já mais alguém terá mão.

E eu que pensei que as chamas tinham amansado… és fogo vivo que me desfaz a pele com fervor.

Queima-me! Devora-me! Apaga-me pois eu não quero arder mais!

Colector de corações

Da orla da floresta conseguia-se vislumbrar a muralha oeste de Lazindur, que atingida pelos raios do sol do meio-dia, resplandecia branca e pura como um local sagrado nunca tocado por mãos nefastas e ao longo da muralha norte, o grande castelo mantinha-se incólume, onde nenhum inimigo do império tinha posto pé. Estendidos diante da cidade estavam vastos campos, sarapintados por animais, pessoas e casas, alguns semeados com diversas plantações, outros frescos e verdejantes onde todo o tipo de gado passeava.
Era a primeira vez que os olhos Midsat tinham a Capital perante si e as historias que os seus companheiros lhe contavam não se conseguiam comparar com o esplendor que se desvendava ao seu olhar.
Midsat desmontou do seu cavalo e deixou-o entregue ao pasto. Retirou uma maçã dos seus mantimentos e sentou-se na relva, desfrutando da paisagem, da fruta e do relaxamento. Nunca antes tinha experiênciado um momento tão sereno e pacifico. Todos os dias na fortaleza tinham de ser devotos ao treino do corpo e da mente, ao estudo de uma arte de combate, ou à análise de uma criatura, de um governo, de um feitiço, tornando os momentos de descanso raros e os com este esplendor, praticamente inexistentes.
O sol foi percorrendo o seu caminho em direcção ao oeste e Midsat só continuou o seu rumo à cidade quando o astro estava prestes a tocar no horizonte. Guiando o cavalo pelas rédeas percorreu os arredores de Lazindur pela estrada principal. Eram, poucos os que também caminhavam por essa estrada, com o anoitecer iminente apenas uns últimos mercadores chegavam a Lazindur para passar a noite, alguns trabalhadores que voltavam ás suas casas nos burgos e um grupo de guardas que patrulhavam a estrada. Afastados da estada estavam os agricultores, arrumando as suas ferramentas, levando o seu gado para os corrais enquanto que as mulheres carregavam as ultimas cestas de alimentos para a segurança dos armazéns ajudadas pelas crianças. Apesar de ser algo usual em todas as aldeias do império, parecia que a chegada da noite atormentava mais o povoado de Lazindur do que o da fortaleza.
Após deixar o cavalo nos estábulos à entrada da cidade, Midsat apressou-se pelos portões sob os gritos de um guarda, que periodicamente avisava que os portões iriam fechar antes do sol se pôr. Ao contrário do que a pouca afluência de pessoas pela estrada dava a esperar, no interior da cidade encontrava-se um mar de cabeças que também se preparavam para a noite. Este era o distrito mercantil, havia poucos edifícios e no centro existia uma grande praça onde estavam montadas varias tendas. Midsat achou admirável de ver tanta gente diferente no mesmo sítio, Enquanto que alguns regateavam com uns últimos clientes, outros fechavam as lojas e arrumavam as mercadorias e no meio daquele caos criado, todos pareciam estar organizados e saber o seu lugar.
Caminhar pelas tendas, uma delas conseguiu chamar-lhe a atenção. O seu dono falava com um possível cliente e por entre a sua mercadoria havia um punhal de excepcional beleza. Midsat pegou nele e examinou-o. A lâmina num dos lados era dentada enquanto que fio da lâmina fazia uma curva suave. Não estava afiada, mas parecia ser muito aguçada. O seu cabo era feito de ossos e estava mais trabalhado, com cortes horizontais no cabo todo e o final que acabava numa escultura que parecia um olho com uma jóia vermelha no meio como se fosse uma pupila de um réptil. O vendedor viu o seu interesse na arma e após acabar o negócio com o outro cliente dirigiu a palavra a Midsat. Era um homem de estatura baixa mas corpulento, já tinha alguma idade pois o seu cabelo já tinha as raízes grisalhas e a barba rala já se encontrava completamente cinzenta. A sua cara possuía varias rugas especialmente vincadas nos olhos.

- Se estiver interessado na adaga passe por cá amanhã que já a terei afiado. Agora vou ter de fechar. – Anunciou com uma voz animada apesar do cansaço aparente no seu rosto.
- É uma peça bonita. Talvez. – Respondeu Midsat sorrindo para o punhal.
- Talvez não é bom para negócio. Ou compra ou não.
Colocando de novo o punhal na banca Midsat dirigiu a sua atenção para o mercador.
- Não tenho maneira de o comprar neste momento. Talvez mais tarde.
- Muito bem. Ficarei à espera. – Disse o mercador sorrindo afavelmente, começando a arrumar a tenda.
Midsat hesitou um pouco.
- Já agora, se não for muito incómodo, poderia informar-me de uma estalagem para passar a noite?
- Ah! Novo em Lazindur rapaz? – Questionou o mercador.
- Primeira vez na cidade. Ainda não me sei orientar neste mar de gente.
- Eu sei como isso é. Eu cá sou de Mireti. Alguma vez esteve lá?
- Não.
- Linda cidade. – Continuou num tom saudoso. - As casas construídas na encosta da montanha, com cada rua em patamares diferentes. Praias de areia dourada. E o mar. Quem vê o mar de Mireti nunca o esquecerá.
Por uns instantes o mercador parou, ficando a olhar para os objectos que arrumara antes de prosseguir.
- Mas não é isso que quer saber pois não? Ora bem. Há vários estabelecimentos espalhados pela cidade, são fáceis de encontrar. Mas eu não me confio a mais ninguém para alem da Madame Slosa, dona do Dragão Vermelho. Fica na zona má da cidade mas não há outro sítio como aquele.
- Na zona má?
- Sim, sim. Mas vale a pena, os melhores pratos são servidos lá, as camas são confortáveis e é barato. – Explicou o mercador, fechando umas caixas. – Para alem do mais, é um bom local para ganhar contactos menos… legais. De qualquer maneira, eu vou dirigir-me para lá, se me quiser acompanhar está mais que à vontade.
- Aceito. Acho que me perderia a estas horas. – Respondeu Midsat.
- Óptimo. Então se fizer o favor de esperar um pouco.

Enquanto o mercador acabava de arrumar a sua tenda, Midsat observou o local com mais atenção. A noite estava eminente e o céu quase negro, as tochas e os candeeiros a óleo já estavam a ser acesos pela cidade. As pessoas tinham-se dispersado e só alguns mercadores restavam, acabando de fechar as suas bancas.
Nesta observação, Midsat conseguiu averiguar que o mercado não se encontrava no centro da cidade. O centro era um jardim com várias árvores e campos de relva que se encontrava a este de onde Midsat se encontrava. A sul do mercado estava uma pequena área residencial envolvendo o templo de Anara onde os residentes levavam oferendas à Deusa e as sacerdotisas tratavam dos doentes e prestavam culto a Anara. Os seus olhos continuaram a prescutar os arredores fazendo-o perdeu a noção do que se passava perto de si, até que algo se esbarrou contra as suas pernas.
Tinha sido uma criança, que após o impacto se desequilibrou, caindo no chão e que agora fitava Midsat de olhos arregalados. Midsat estendeu a mão ao garoto, que aceitou o acto, usando-a para voltar a levantar-se. Mas ao invés de prosseguir o seu caminho, continuou a olhar para Midsat. Por breves instantes ambos ficaram de olhares cruzados e expressões imutáveis antes de serem interrompidos por uma rapariga.

- Marin! Estás aqui, pensei que te tinha perdido. – Disse para o rapaz, aparentemente mais novo que ela. Em seguida, dirigiu a palavra a Midsat e assim que ele lhe retribuiu o olhar a rapariga baixou o rosto. – Peço imensa desculpa senhor, espero que ele não o tenha incomodado. Pede desculpa Marin.
- Não, ele não incomodou, só teve um pequeno desequilíbrio. – Respondeu Midsat não conseguindo conter um sorrizo. – E eu não sou ninguém de importante, não é razão para a menina baixar a cabeça.

Então a rapariga levantou a cabeça rapidamente e fitou Midsat por poucos instantes antes de começara a corar e voltar a baixar a cabeça repentinamente.

- Peço desculpa, mas é uma questão de respeito. E na minha posição é assim que devo agir. – Justificou-se aparatosamente. – E Marin ainda não lhe pediu desculpa pelo incómodo.
- E não tem de pedir. – Disse Midsat esfregando o cabelo ao rapaz. – Um homem sabe quando fez mal e precisa de se desculpar.

O rapaz afirmou com a cabeça e sorriu, pouco depois os sinos do templo tocavam, marcando a passagem de hora.

- Marin, temos de ir, o senhor Tarne já deve estar a nossa espera.

A rapariga fez uma vénia para Midsat, agarrando em seguida na mão do pequeno Marin e deslocou-se em passo acelarado para a saída da cidade. Midsat viu os dois a afastarem-se e analisou-os. Tinham idades demasiado próximas para serem mãe e filho, mas eram demasiado semelhantes para não serem da mesma família. O que restava a possibilidade de serem irmãos. Ambos tinham uma cara arredondada com pele delicada e branca, os seus cabelos tinham a mesma tonalidade de castanho claro e os seus olhos eram idênticos, ambos grandes e negros. Mas apesar da análise ser aos dois o olhar de Midsat ficou preso no cabelo da rapariga que entrançado, longo e volumoso, balançava de um lado para o outro conforme ela andava. O mercador aproximou-se de Midsat enquanto ele estava distraído e colocando-se ao seu lado comentou.

- Estou a ver que já anda a fazer amigos.
- Acho que gosto de mulheres com cabelos compridos. – Respondeu-lhe Midsat sem deslocar o olhar.

O mercador soltou uma grande risada e continuou.

- Todos nós gostamos. - Comentou num tom jocoso. - É melhor irmos para a estalagem antes que as criaturas piores da noite comecem a invadir as ruas

O Outro Lado – Introdução

O objectivo deste blog (ou blogue, como quiserem) é simples: publicar historias.

Eu tenho um enorme gosto por escrita e leitura, com preferência para a fantástica, e durante os anos passados tive umas quantas plataformas destas onde ia pondo uma história aqui e uma história ali mas rapidamente perdia interesse. Ora bem, desta vez pretendo pegar na situação de uma maneira diferente. Como blogue (atrofia-me escrever isto) principal tive o Imperialium, blogue infame esse, nunca teve o devido reconhecimento. Mas devido a falta de inspiração (pelo menos cómica), ou até mesmo, falta de interesse, ele caiu em esquecimento, falta de comentários, falta de posts e algo que eu posso dizer que contribui bastante, falta de humor.

Esse grande blogue já teve o seu momento de ouro e agora não passa de uma boa memoria de caos e humor nonesence, mas a minha criatividade e vontade de escrever ainda existem, se bem que refinadas, e assim como os meus últimos posts provaram, a minha escrita já não era lugar para ali, para alem disso, muitas vezes quis exprimir a minha fúria, felicidade, êxtase ou loucura num texto mais conciso e pessoal sem nunca sentir que tinha um sitio onde o pôr. E assim surgiu este… Outro Lado

Em suma, O Outro Lado é o sítio onde pretendo descarregar a minha inspiração, algumas psicoses.

Agora, isto vai requerir alguma organização, pois em termos de historia gostava de escrever varias pequenas e talvez uma ou outra de médio tamanho, particularmente porque estou no processo de escrever uma grande obra (não me sinto propriamente à vontade em usar este termo) e desejava que todas as ideias extra que tenho tido não se perdessem. Para alem disso, também pretendo que isto seja um sítio onde explicarei as origens dos nomes, explicar os mundos criados no decorrer das histórias etc. E claro que também haverá as minhas desavenças comigo próprio, desabafos e criticas que terão um papel simbólico na vida deste blogue.

Para tal organização haverá três etiquetas principais.

Contos – Para as historias que aparecerem por aqui. Possivelmente elas serão também divididas por título.

Glossário – Aqui irão encontrar-se as explicações dos termos usados, informação sobre locais, crenças, mitos e cultura dentro destes universos.

Delirium – Talvez porque não me leve muito a serio, ou talvez por a parte de mim que sabe que todos temos um pouco de louco dentro de nós, este vai ser o nome para a categoria que vai suportar a minha mente racional e emotiva.

Espero que dentro em breve publique alguma coisa.