Colector de Corações

Parte 7


A manhã foi apresentada ao som pesado de um trovão que rufou pelos céus a cima de Lazindur, anunciando a chegada de uma tempestade. As nuvens carregadas passavam para alem do horizonte e ameaçavam descarregar o seu fardo sobre a capital do império.

O outro trovão sou acima das cabeças dos habitantes da cidade, receosos que a chuva estragasse um dia de comercio. Leiva despertou ao som desse trovão de olhos arregalados olhando para o tecto do quarto, sem mostrar um único sinal de sonolência. Rapidamente levantou-se e começou a vestir o pouco que tirara do corpo para dormir. Todos os movimentos do seu corpo enquanto se vestia eram uma distracção aceitável para meter a mente nublada a modos de não estragar o seu momento a sós nesta manhã.

Abrindo a janela viu as primeiras gotas de chuva a chegarem ao chão e de seguida um dilúvio lançou-se sob as terras dos homens. A chuva caía ruidosa e imponente sobre telhados, ruas e pessoas, lavando toda a cidade. As ruas enchiam-se de água e lama que nem afluentes de um rio pantanoso. As pessoas corriam ao abrigo das suas casas, de templos e tabernas mais próximas, receosas do dilúvio.

Quando Leiva deixou o quarto para trás e desceu para o andar inferior, deparou-se com uma enchente de gentalha que se amontoava à porta e janelas da estalagem, observando com espanto a chuva que caia sobre eles e os céus que se tinham aberto para essa demonstração de poder.

Atrás do balcão só se encontrava Fasala, enquanto que as suas irmãs Tella e Rasi serviam os clientes. Das quatro irmãs, Fasala era a que se assemelhava mais a Slosa. Era mais alta que Slosa e tinha uma presença forte, os seus olhos tinham um tom azul celestial como se os olhos fosse o próprio céu que decidira observar os mortais. O cabelo era curto como um corte masculino mas tinha exactamente a mesma tonalidade do de Slosa. Ela era a melhor candidata a ser a verdadeira filha de Slosa, mas não havia certezas, mesmo em toda a informação que Leiva tinha conseguido descobrir das quatro filhas, que por si não era muita, não havia nenhuma prova que uma das quatro fosse realmente do sangue da Madame Slosa. Não haviam muita pessoas que confiassem em Leiva e o sentimento era recíproco, mas desde cedo que existia uma animosidade inexplicável entre ela e Fasala.

Quando se aproximou do balcão, Leiva manteve-se em silencio com os seus olhos cravados nos de Fasala, ao que esta lhe retribuiu sem um único sinal do medo que tomava as suas outras irmãs na presença da ladra. Por breves momentos, nem uma palavra foi proferida, ou um gesto feito, as duas limitaram-se a trocar um olhar frio e expressões imutáveis, até que Fasala com um ar de desdém e desagradada pegou num pequeno farnel embrulhado num pano e pô-lo em cima do balcão. Sem demoras, Leiva pegou no que seria o seu pequeno-almoço e sorridente acenou com a mesma mão troçando:


- Comporta-te.


Leiva virou as costas, meteu o capuz e saiu do Dragão Vermelho para defrontar o temporal. Enquanto isso, Fasala ardia de fúria vendo a ladra a sair pela porta. Não suportava a intromissão desta degenera na vida da sua família e para piorar as coisas o facto de que a sua mãe a ajudava, corroía-lhe as entranhas com fúria. Não imparcial à situação, Tella aproximou-se da sua irmã com uma feição terna e dirigiu-lhe a palavra:


- Sempre que vocês falam, ficas com a mesma cara.

- Não tens alguém a quem servir? – Perguntou Fasala amargamente.


Tella silenciou-se e torceu o nariz não retirando os olhos da sua irmã, que eventualmente cedeu à pressão silenciosa da sua pequena irmã.


- Desculpa. A culpa não é tua.

- Eu sei que não é! – Ripostou Tella poisando a bandeja que carregava e levando as mãos à cintura. - De qualquer maneira não devias estar assim, só lhe dás o que ela quer.

- Eu não lhe estou a dar nada! Eu ainda não lhe dei nada! – Asseverou Fasala exaltando-se um pouco mais. – Tu espera, ela não perde pela demora.

- Tu por acaso não estás a pensar em meter-te com a Leiva pois não?

- Não directamente.

- Fasala, tu não penses em… - Começou Tella tentando repreender a sua irmã acabando por ser interrompida.

- Não estão com muito trabalho pois não? – Perguntou Fasala, mas sem dar tempo para a sua irmã responder continuou. – Toma conta do balcão por mim eu tenho de ir falar com a mãe.


Sem demora, depois de acabar a sua frase, Fasala saiu pelo corredor em direcção aos seus aposentos. A sua casa e a estalagem eram adjacentes uma à outra com um corredor conectando ambas para fácil acesso. Após trespassar esse corredor Fasala parou à porta do quarto da sua mãe e bateu. Slosa usava muito tempo na manhã para se preparar para o dia e era algo que as três outras filhas respeitavam, mas nunca Fasala e esta seria mais uma altura em que o seu ímpeto iria colidir com a vontade da sua mãe.


- Podes entrar Fasala. – Concedeu Slosa logo em seguida ao ouvir

- Como sabia que era eu? – Perguntou a sua filha ao entrar lentamente no quarto.

- És sempre tu, as tuas irmãs podem esperar e falar comigo depois de eu estar pronta. Mas tu, não respeitas nada que esteja no caminho do teu ímpeto.

A sua filha manteve-se calada com um sorriso na cara.

- Mas diz-me. O que te trás aqui. – Questionou Slosa continuando a pentear o cabelo à frente do espelho.

- É Leiva. – Disse Fasala tentando meter a pose emproada. - A presença dela aqui tem sido um pouco influente no Dragão e a senhora não nos fala sobre o que isso significa.

- Ela está a fazer um pequeno trabalho para mim, nada que precises de te preocupar.

- Nada? – Fasala não era boa a manter a compostura e este era outro momento em que ela cedia aos seus impulsos. - Uma ladra procurada pela guarda, talvez até uma assassina, anda a trabalhar para si, anda a esconder-se na nossa estalagem. É mesmo isso que quer?

- Tu não entendes Fasala e tu não poderia entender, são coisas que aconteceram há muito tempo.

- Lá está outra vez o passado obscuro! – Barafustou furiosa com a intriga da situação. – Será assim tão difícil de falar disso?

- Não Falasa, não é algo propriamente fácil de falar. Nem saberia onde começar.

Fasala aproximou-se da sua mãe e sentou-se na bancada onde pousava o espelho.

- Eu tenho tempo minha mãe.

Slosa suspirou e deixou pender a cabeça derrotada. Sabia que eventualmente teria de dizer a verdade às suas filhas mas temia esse momento como a sombra da morte. Agora confrontada com ele, sentia um ligeiro alivio ao confessar-se apenas a Falasa.


À treze anos atrás eu estava longe de ser a pessoa que sou hoje. O meu trabalho era menos honroso mas incrivelmente requisitado. Era interessante ver que, as pessoas importantes que nos amaldiçoavam a qualquer oportunidade para serem bem vistos eram as que requisitavam os nossos serviços mais que ninguém.”


Slosa baixou o seu vestido deixando as costas desnudas e Falasa observou com surpresa o a imagem que estava pintada nas suas costas. O contorno a preto de uma mão como se alguém suplicasse ou estivesse desesperado para se manter agarrado à vida e usasse Slosa como o seu amparo.


Esse é o símbolo da Ordem da Mão Negra, e durante anos, também foi o meu. Matar, não é só acabar uma vida. Matar é ver o medo da pessoa, a tristeza, o sentimento de traição e o sofrimento. Matar é carregar mais um fantasma para toda a vida, é sentir o sangue a escorrer nas nossas mãos após a faca estar enterrada na garganta. É ouvir o ultimo sopro de vida após o veneno ter tido efeito. E nem todos estão prontos para isso.

Ninguém, está pronto para isso, mas todos os querem fazer. Por mesquinhes, ganância, medo, vingança. Razões essas não faltam. E isso foi o meu ganha pão durante a minha infância. Mas houve uma fatídica noite em que o meu trabalho levou-me alguém para alem da importância de todos os nobres mesquinhos para quem eu já tinha trabalhado. Uma pessoa de imensa importância, cujo o trabalho era simples: eliminar uma criatura. Mas quando vi essa criatura… era uma criança, apenas uma criança, não teria mais de dois anos. Eu não a consegui matar, depois de assassinar todo o tipo de gente eu não consegui matar uma criança, no inicio de vida. E então fugi. Abandonei tudo o que conhecia e deixei para trás tudo o que acreditei por aquela criança e até agora não tive uma migalha de arrependimento. Abri o dragão vermelho, vocês entraram na minha vida e nada foi como antes. Somos felizes não é verdade?”


- É verdade mãe, somos. – Respondeu Fasala, atónita com a revelação da sua progenitora. – Mas onde é que isto liga com a ladra.

- O que me fez abandonar a minha vida está a acontecer outra vez e estou a usar a sua ajuda para evitar que desgraça suceda.

- Então...


Fasala tentou proferir outra palavra mas a voz escapou-lhe da garganta, não conseguia, nem queria acreditar na historia que lhe tinha sido contada. Os seus olhos lutavam contra as lágrimas que se avizinhavam e o seu corpo cedia ao terror, tremendo compulsivamente.

- Não te apoquentes filha. – Confortou Slosa levantando-se e estendendo as mãos à sua filha. – Isto irá acabar, não precisaremos de viver em terror.


Ela tentou aproximar-se da sua filha nem que fosse para uma carícia, mas Fasala afastou-se bruscamente e virou-lhe costas. Fugiu para o seu quarto, lançou-se para a cama e meteu a cabeça entre as pernas, tentando absorver a historia da sua mãe. Se fosse verdade, significaria que uma das suas irmãs seria o alvo de sua mãe e tanto Tella como Delfi tinham as idades apropriadas para serem essa criança, e se tudo acontecia outra vez como Slosa tinha previsto, significaria que as suas irmãs estariam em perigo?