Colector de Corações

Parte 8

A chuva caía como um dilúvio inundando as ruas de Lazindur. A água escorria pelas ruas em direcção às sarjetas e aos esgotos com um fervor demoníaco. Não havia viva alma das ruas para alem da figura encapuçada de Leiva que cruzava as ruas com uma velocidade tremenda como um fantasma, uma sombra que vagueava pelas artérias da cidade fluindo com os líquidos que por elas passavam.
Por fim ela chegou ao seu destino. Era uma casa que, nos pequenos detalhes, destacava-se do resto. Tinha dois andares, os parapeitos das janelas tinham elaborados detalhes cravados na pedra e o jardim tinha flores exóticas em abundância. Não era uma simples casa, era uma vila de algum nobre.
Entrar na casa não foi difícil, pois Leiva tinha subornado um dos criados para deixa-la entrar pela porta das traseiras, mas não dar nas vistas tornou-se um pouco complicado. Apesar do temporal enfeitar os cantos da casa com sombras, também tinha mantido os serventes e guardas dentro de portas, portanto todo o cuidado era pouco. Com isso em mente, Leiva colou-se às sombras e abraçou as paredes no mais profundo silencio tentando sondar presenças nos seus arredores. Alguns aposentos requeriam mais cuidado devido a patrulha de guardas ou um servente encarregue de uma tarefa, outros ainda tiveram de ser completamente ignorados devido a sentinelas permanentes e Leiva necessitou de encontrar outra rota até ao seu objectivo.
Encontrando-se no segundo andar ela conseguiu pôr os olhos na sua meta. Os aposentos do nobre encontravam-se no fundo de um corredor com dois guardas de sentinela. Algo que Leiva não conseguiria ultrapassar sem alertar a casa da sua presença. Perante este obstáculo a Ladra decidiu fazer algo mais arriscado. Com passos silenciosos ela aproveitou a ligeira distracção dos guardas para fazer uma pequena passagem pelo corredor e entrar num dos compartimentos a ele adjacentes. Ao fechar a porta Leiva deparou-se com uma figura prostrada na cama e o seu coração acelerou até se aperceber que dormia profundamente. Aliviada, Leiva agiu em silencio e rapidamente, pois nesta altura alguém já suspeitaria do misterioso trilho de água deixado por ela ao avançar pela casa, dirigindo-se à janela. O temporal já tinha abrandado e agora apenas caia uma chuva miúda, como se a natureza tivesse decidido facilitar a próxima proeza. Com cuidado Leiva abriu a janela e saltou para o parapeito, fechando-a do outro lado. Dotada de uma destreza surpreendente usou as saliências e outros parapeitos para deslocar-se de quarto em quarto pela parede exterior da casa, por fim conseguindo encontrar-se em frente aos aposentos no nobre. Abrir a janela do exterior não se apresentou obstáculo e dentro de segundos Leiva já se encontrava dentro do quarto com o seu objectivo à mão de semear.
Havia uma pequena caixa na mesa de cabeceira fechada a cadeado, algo que não passava de nada mais que um véu nas mãos de Leiva, mas antes que as suas mãos pudessem forçar a fechadura, ouviu vozes a levantarem-se do outro lado da porta e correu a se esconder por detrás dos cortinados. De lá, ela conseguiu ouvir o ranger da porta a abrir-se e os passos pesados de dois homens a entrarem no quarto. Pelas vozes pareciam ser de idades muito diferentes e pela conversa mostravam ser pai e filho.

- Eu discordo plenamente destas situação meu pai. – Criticou o mais novo.
- Já ouvi as tuas objecções Clariese e a minha resposta continua a mesma. Estamos aqui para ajudar uma velha amiga e isso é mais importante que as tuas andanças na corte.
- Mas eu encontro-me a cortejar a menina Solena e o pai sabe quantos pretendentes ela tem. Se desapareço durante um dia cairão todos em cima dela que nem aves de rapina.
- Basta Clariese! – Gritou o pai enfurecido. – Nós vamos manter-nos aqui até o nosso trabalho estar completo. Eu não estou aqui para te satisfazer os caprichos, portanto vais parar com este assunto e acatar as minhas ordens! Estamos entendidos?
- Sim senhor. – Murmurou o filho num tom resignado.
- Agora vai. Prepara os criados para a viagem, pois partimos mal este tempo passe. E pelos vistos não vai demorar muito.

Antes do seu filho abandonar o quarto o homem deslocou-se à janela na esperança de encontrar o céu azul rasgando as nuvens negras mas ao afastar os cortinados deparou-se com um olhar gélido e um sorriso sinistro a enfeitar a pele branca da Leiva. Antes que alguém tivesse tempo de livrar-se do efeito do choque pensar em reagir, Leiva usou uma pequena moca de madeira que trazia sempre consigo para atacar o mais velho, que com uma única pancada na cabeça caiu no chão sem sentidos. De seguida o jovem desembainhou a sua espada e chamou pelos guardas. Com um grito de fúria, lançou-se a Leiva com um ataque desajeitado, que Leiva conseguiu desviar-se sem esforço. Aproveitando o desequilibro do rapaz, Leiva agarrou-lhe o braço e torceu-o atrás das costas. Quando os guardas entraram Leiva aplicou um pontapé forte nas costas do jovem, lançando-o contra os guardas fazendo-os perder o equilíbrio tentando aparar o jovem. Agindo velozmente, lançou-se por cima da cama e com a caixa na mão voltou para perto da janela. Os guardas já se tinham reposto e avançavam contra ela esbaforidos com espadas em riste enquanto que, esfregando as costas, o rapaz gritava ordens. O sorriso na cara de Leiva refez-se quando os dois guardas estavam mesmo em cima dela e enquanto delicadamente e sem levantar suspeitas retirava, uma esfera de um pequeno saco que tinha à cintura. Quando estavam perto o suficiente Leiva lançou a esfera ao chão criando uma grande explosão de fumo e de luz que ofuscou os guardas. Aproveitando-se da situação que tinha criado, Leiva lançou-se destemidamente da janela em queda livre acabando por aterrar no chão como se fosse uma gata. Apesar dos seus músculos e ossos pulsarem de dor no momento do impacto ela não se demoveu e começou a fuga por as ruas ainda ensopadas da chuva, mas que já continuam algumas almas que desafiavam o temporal que ainda cobria os céus ameaçando começar uma outra vez. Fugiu em direcção às vielas e becos que tão bem conhecia.
Deixou para trás uma vila em barafunda onde ordens eram lançadas para o ar e os seus guardas tentavam impor ordem e algum sentido no que se tinha passado. Não demorou muito até a guarda da cidade intervir a fornecer o seu auxilio.
O líder do pelotão que oferecia a sua assistência era alto de cabelo acobreado e expressão pesada. O nobre rapidamente passou a dar ordens e seguiu a identificar rapidamente a ladra por um dos cartazes que se encontravam fixos nas casas, o que
instigou ainda mais a motivação dos homens, pois viam-se envolvidos na captura da
princesa ladra.
Em poucos minutos, patrulhas faziam buscas intensivas aos arredores da mansão em busca da ladra, enquanto que outros pelotões penetravam na cidade por ruas menos usadas tentando descobrir os retiros ocultos da princesa.
No entanto, a ladra escondia-se em plena vista. Numa tenda no mercado sob a protecção de um dos seus cúmplices, a ladra forçava a fechadura da caixa.

- E o que é isso? – Questionou o homem que observava Leiva. Alto e de pele escura, com o cabelo completamente rapado e uma face enigmática.
- O meu trabalho. – Respondeu Leiva sem tirar os olhos da fechadura. – Agora volta para a tua loja, deixa os adultos trabalhar.

Mas homem não se demoveu e continuou a observar Leiva no seu “trabalho”.
Finalmente a fechadura cedeu à intrusão da ladra revelando seu conteúdo. Um rico tecido de seda enrolava o prémio pelo qual Leiva ansiava. Era uma estátua de Arana feita em mármore, igual a muitas outras espalhadas pelas casas dos habitantes na cidade. A estátua era tão banal que fez Leiva torcer o nariz, coçando a cabeça, pensativa.

- Mas o que vem a ser isto? – Questionou-se ela, ignorante que ainda era observada.
- É uma estátua de Arana. Eu pensei que para uma grande ladra tu saberias o que isso é. – Troçou o homem. – É bom ver onde tu perdes o teu trabalho, eu vendo pelo menos uma estátua dessas por dia. Podias simplesmente ter-me pedido que eu dava-te uma.

Com um movimento brusco, Leiva lançou a estátua ao seu sócio de negócios mais obscuros e ele agarrou-a com facilidade com uma mão, mas ao segura-la houve algo que lhe chamou à atenção. Sob o olhar inquisitivo da ladra, o homem avaliou o peso da estátua e perscrutou os seus detalhes com os olhos e dedos à procura de algo fora do normal. Sem aviso deixou cair a estátua. A Leiva deu um salto, soltando um pequeno grito, ao aperceber-se do intuito do seu colega, mas nada conseguiu fazer em relação a isso. A estátua despedaçou-se no chão perante o olhar estupefacto da ladra. Ela deslocou-se rapidamente para perto do homem com violência no olhar, mas acabou por parar ao vê-lo agachar-se e a remexer com os seus dedos grossos pelos cacos. No meio dos cacos de mármore algo saltou à vista. Uma jóia branca, perfeitamente redonda, que parecia ter formas vaporosas presas no seu interior. Quando a ladra tentou pegar na jóia, o olhar reprovador do eu amigo fê-la quedar-se. Depois, com um pedaço de cabedal na mão ele agarrou na pedra e ergueu-a até à linha do olhar. Parecia uma pequena estrela de almas confinadas a um núcleo de energia e envolvidos numa superfície transparente.

- Isto é uma jóia de demónios. – Cuspiu o homem olhando para Leiva que observava a jóia com um grande sorriso nos lábios. – Esta jóia suga a essência de quem lhe tocar. Esta é pura e as sombras que rodopiam em torno dela mostram que está faminta.
- Não me interessa se amaldiçoará a minha família toda, aposto a minha sorte com que era isto que eu realmente procurava.
- Uma aposta pesada Leiva, eu não proferiria essas palavras se fosse a ti. A tua sorte já te salvou tanta vez.
- Mas meu amigo, eu tenho a certeza que é isto. – Assegurou a ladra com o seu olhar obcecado pela jóia. – Se isto suga-me a essência se eu tocar, guarda-a de uma maneira que eu a possa transportar. Esta noite vou entrega-la.

Quando o amigo de Leiva, preparava a jóia para ser transportada a sua ajudante aproximou-se deles, nervosa e ofegante.

- Garto, Leiva, os guardas aproximam-se!
- Despacha-te então e eu saio daqui o mais rápido possível. Não quero ver o meu contacto profissional implicado nos meus problemas.

Com a ajuda da rapariga, envolveram a jóia numa camada de seda e noutra de cabedal, voltaram a colocar na caixa de onde tinha saído e o mercador fechou-a com um dos seus cadeados. Depois de entregar a chave a Leiva, ela lançou-se outra vez para as ruas de Lazindur, percorrendo alguns dos seus caminhos na direcção oposta, refazendo os seus passos na esperança de confundir as buscas. Depois disso precisaria de um sitio onde se esconder, mudar de roupa. Sítios desses para ela não faltavam na cidade.