Colector de Corações

Parte 6

Encontravam-se a meio da tarde e as raparigas movimentavam-se atarefadas de um lado para o outro, carregando pratos e limpando o chão e mesas. Com os cabelos presos para não lhe estorvarem a vista e uma pena molhada em tinta numa mão, Slosa ia escrevendo, pausadamente, num papel que tinha em cima do balcão. A filha de Slosa que tinha falado com Midsat fez-lhe um pequeno cumprimento com a mão e baixou a cabeça. Midsat apenas respondeu-lhe com um sorriso, dirigindo-se até Slosa.. Vendo-o ela pousou a pena e com o seu sorriso passivo fez uma vénia a Midsat:

- Bem vindo Midsat. Lamento a confusão desta manhã. Aquela rapariga não se sabe comportar. Já não é a primeira vez que faz algo assim.
- Não precisa de se desculpar. – Respondeu-lhe Midsat um tanto cordialmente. – A minha reacção não foi louvável. Fervi em pouca água e sou eu quem precisa de se desculpar.

Slosa observou Midsat sorridentemente e estendeu-lhe os braços da mesma maneira que cumprimentou Lainos. Midsat hesitou, mas prontamente imitou o mercador e estendeu os braços juntando as suas mãos com as de Slosa, que sorrindo apertou as mãos de Midsat e continuou:

- A Leiva é insuportável, arrogante e impulsiva. Mas não posso negar-lhe entrada.
- Porque não? Se ela é prejudicial para o negocio não vejo razão para a deixar entrar.
- Ela não é prejudicial, a tua presença aqui confirma que não é por aquela rapariga que os meus clientes deixam de . – Continuou Slosa deixando o cumprimento peculiar. – E quando eu era mais nova a minha vida, como ela, também estava longe de assentar.

As suas filhas foram parando o seu trabalho ao ouvir as palavras a fluir da boca de Slosa.

- Algo aconteceu. – Continuou desviando o olhar de volta para o pergaminho e pegando na pena. – Algo fez-me mudar. E como eu mudei, ela também pode mudar, não há razão de lhe virar as costas.

Reparando na atenção dada à sua conversa pelas filhas, Slosa respirou fundo e de olhos fechados sorriu dizendo:

- Mas isso é uma historia para outra altura. E que faz aqui Midsat? Nesta altura não costumamos ter clientes e aproveitamos para limpar um pouco o Dragão e organizar as contas. Não estamos prontas para servir.
- Nada disso Slosa, nem precisa de se preocupar. Apenas esperava encontrar Lainos aqui. – Respondeu Midsat. – Procuro umas ervas e pensei que ele poderia ajudar-me.
- Se o queres encontrar terás mais sorte à noite pois ele estará aqui de certeza. – Ponderando um pouco, Slosa molhou a ponta da pena na tinta e pronta a escrever mais uma linha voltou a falar. – Eu estou a escrever a lista de mantimentos para amanhã uma delas ir comprar. Se quiseres podes dizer-me o que procuras e elas depois trazem.

Pegando na folha entregue por Elizia a Midsat, Slosa arregalou os olhos ao conjunto de ervas necessárias. Fitou os nomes num silencio desconfortante. Apreensiva mordeu o lábio inferior enquanto esticou o pequeno papel com as duas mãos.

- Está tudo bem? – Interrogou Midsat confrontado com o mau estar de Slosa.
- Nada. – Tentou assegurar Slosa mas deixando a sua voz estremecer. Segundos bastaram para Slosa recompor o seu controlo e a expressão de assombro foi rapidamente trocada por um caloroso sorriso. – Não foi nada, mas agradeço a preocupação. Ora bem, não será problema, amanhã uma das minhas meninas trará isto. Por volta da hora do almoço poderás vir buscar.
- Tem a minha gratidão Slosa.

O tempo passou calmamente, trazendo a afluência de clientes da noite passada. A comida foi sendo servida e a bebida começou a fluir dos jarros e a verter dos copos para dentro das gargantas. O ambiente festivo foi-se espalhando e com a chegada de trovadores a musica inundou os ouvidos de todos presentes. Slosa e as suas filhas foram se ocupando a servir os clientes e chegando a uma altura na noite já estavam inundadas sob trabalho. As luzes, perfumes e cores transformavam aquela pequena estalagem num local magico e cheio de vida, tornando difícil de imaginar o local e transformando o Dragão Vermelho num espaço magico. E como habitualmente, os mesmos mercenários estavam espalhados pelo estabelecimento com olhos atentos a quem causasse alguma agitação.
A noite ainda não tinha espalhado completamente o seu manto estrelado sobre o céu quando Lainos entrou pela porta do Dragão. Prontamente cumprimentou Slosa com a sua maneira peculiar e em seguida cumprimentou Midsat. Tomou um jantar leve acompanhado por Midsat que não resistiu em meter conversa em relação às ervas.

- Podes dizer-me para que precisas destas ervas? – Questionou Lainos depois de observar o papel.
- Julgo que não estou em liberdade de revelar. Mesmo que deva admitir que eu próprio não sei. – Retorquiu Midsat tomando um trago de vinho. – O que me pode dizer em relação a essas ervas?
- Bebida de bruxas. São ingredientes poderosos e não há muitos sítios onde se possa encontrar. – Contou Lainos esfregando a rala barba. - Aqui na cidade também são raros mas se souberes onde procurar não deve ser muito difícil.
- O que quer dizer com bebida de bruxas? Nunca ouvi essa expressão.
- Como a expressão indica, são usados por bruxas para poções. – Explicou Lainos.
- Sim. Dois destes são usados em bastantes poções mas o terceiro não consigo identificar o uso.
- Não sabes mesmo para que precisas? – Interrogou Lainos, recebendo apenas uma afirmação negativa. - Pois bem. Isto é uma raiz usada apenas para as poções mais fortes e já ouvi rumores que também è usada para fazer algo mais sombrio.
- Magia negra? – Questionou Midsat ficando estático ao aperceber-se das implicações que aquela pequena lista poderia ter.
- Exactamente meu rapaz. Mas também pode ser nada, pode ser outro tipo de mistura.

Midsat relembrou o aspecto do covil da condessa. Apesar de ser semelhante a um antro de um feiticeiro, não possuía aspecto de ser utilizada magia negra. Não havia ossos de animais ou até de humanos, não havia símbolos negros ou altares sombrios, tudo aparentava que era só um local para a pratica de magias simples, no entanto a duvida tinha sido implementada e por agora iria persistir.
A noite foi acabando pausadamente, com os clientes a abandonarem a estalagem. A musica cessou e os pedidos de bebida foram findando. Os únicos clientes que se mantiveram foram aqueles que as camas para a noite seriam aquelas daquele estabelecimento.
Após o serão passado com Lainos, Midsat apercebeu-se que ao acompanhar o mercador na bebida tinha passado o seu limite de álcool. A sua visão estava ligeiramente turva e os seus membros estavam um pouco dormentes. Tentando dissimular o seu estado, Midsat manteve-se no seu lugar até todos abandonarem o recinto. Quando tentou levantar-se cambaleou e voltou a cair no banco, soltando varias rizadas a Slosa e às suas filhas. Tella, a mais nova das quatro, rapidamente foi ao auxilio de Midsat por entre pequenos risos.

- Nunca me foi avisado o quanto Lainos bebia. – Contestou Midsat, sendo cego pelo manto de cabelo dourado quando Tella o ajudou a levantar-se.

Sendo pequena em estatura, Tella teve algumas dificuldades em carregar Midsat e as suas irmãs não a conseguiam acudir pois estavam ocupadas com mãos cheias de pratos e copos. No entanto algo aliviou a pressão que Midsat fazia em Tella. Com o outro braço sobre os seus ombros e a face ocultada por o capuz, a princesa dos ladrões ajudava Tella a carregar Midsat. Nenhuma das raparigas presentes falou, mas era visível a apreensão nas suas caras, especialmente aquelas que tinham presenciado os acontecimentos desta mesma manhã. As duas raparigas carregaram-no até ao quarto e depois de Tella abrir a porta onde Leiva a dispensou. Relutante, Tella abandonou-os e Leiva levou Midsat para dentro do quarto. Lá dentro ela lançou-o para cima da cama e sentando-se na ponta tirando-lhe as botas.

- Nunca esperei que ficasses tão mal só por o nosso primeiro encontro não ter corrido tão bem. – Troçou Leiva acabando de tirar a primeira bota.
- O que é que estás tu aqui a fazer? – Questionou Midsat de olhos fechados sem conseguir mexer os seus membros.
- Normalmente pensaria que a resposta certa seria que vinha roubar tudo o que tens de valioso, mas como já vi que o que tens de valioso é quase inexistente e como possivelmente não te lembrarás de nada amanhã. Vim pedir-te desculpa.
- Tu nem me conheces e estás a pedir-me desculpa? – Disse Midsat, soltando uma grande gargalhada de seguida. – Ainda por cima alguém com a tua reputação?
- Não se é a melhor ladra de Lazindur só a fazer inimigos. – Respondeu Leiva retirando a segunda bota de Midsat. – E também, eu fico nervosa quando conheço outras pessoas.

Ambos se riram enquanto Leiva acabava por tirar o cinto e o pequeno arsenal de facas de Midsat.

- Porque estás a fazer isto? – Perguntou finalmente Midast quase prestes a render-se ao sono.
- Porque eu sei o que é dormir com a cabeça turva pelo álcool e pedaços de cabedal colados ao corpo. – Contrapôs Leiva sorridentemente e levantando-se da cama.

Ela afastou-se até à porta e antes de abandonar o quarto ainda acabou por dirigir a palavra a Midsat uma ultima vez:

- Depois podemos voltar a falar. Se te lembrares de alguma coisa.

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Peço desculpas pelo atraso de uma semana mas para compensar tentarei publicar outra parte desta sexta para sábado.

1 comentário:

Nerzhul disse...

"que os meus clientes deixam de....?"