Colector de Corações - Parte 9

O terceiro dia chegou sem a tormenta do anterior. Os céus estavam azuis, com poucas nuvens e a terra ainda húmida das chuvas apresentava um castanho vivo, com o cheiro da terra a inundar o ar. Enquanto os agricultores aproveitavam a suavidade da terra e os porcos se divertiam a rebolar na lama que restava, Midsat já se encontrava no caminho para o palácio da Condessa. O pequeno caminho pelo bosque circundante pareceu-lhe curto quando ele viu a guarnição de Tarne.
Confirmou que trazia os três sacos com as diferentes ervas. Sacos esses que no dia anterior tinha comprado quando acompanhava Rasi e Delfi nas compras para o Dragão Vermelho. Rasi era a primeira das filhas de Slosa que Midast tinha conhecido naquela manhã em que também tinha tido o seu confronto com a Princesa ladra, mas que até aquele momento não sabia o seu nome. Longe do seu local de trabalho Rasi mostrava-se ainda mais sociável, puxando por Midsat para partilhar da sua vida, fazendo piadas e oferecendo as suas risadas caricatas e joviais. Já Delfi tinha se mantido mais silenciosa. Era a segunda mais nova da estalagem mas tinha uma maturidade bem acima da sua idade. Comportava-se como uma pequena senhora, sorrindo graciosamente das piadas da irmã, conversando pausadamente e cumprimentando cordialmente todos os que conhecia ou quem negociava. Não era uma rapariga tão bela quanto as suas irmãs. Era quase tão alta quanto Rasi, tinha a cara arredondada e cabelo negro quase indomável que apesar de liso negava a manter-se homogéneo, os seus pequenos olhos tinham uma tonalidade castanha que às vezes se confundia com vermelho e a sua pele tinha um tom torrado, evidenciando que tinha as suas raízes no sul.

Cada uma das irmãs tinha uma cesta onde iam colocando as suas compras. Quando já se encontravam carregadas decidiram ir procurar pelas ervas que Midsat necessitava. E como Lainos tinha previsto, duas das ervas encontraram-se com bastante facilidade, já a terceira foi impossível de achar nas lojas convencionais. Por isso precisaram de percorrer caminhos mais negros nos mercados da cidade. A sua busca levou-os uma velha que vários habitantes de Lazindur chamavam de bruxa, pois todos aqueles que admitiam algum conhecimento da suposta erva diziam que apenas conheciam uma pessoa que poderia possuir tal artigo e essa pessoa tinha reputação de praticar bruxaria assim como possuir conhecimento das magias mais negras existentes.
Chegaram a uma casa na parte pobre da cidade. Como todas as outras neste local, era feita de madeira, mas esta estava um pouco mais envelhecida. Das janelas vinha um brilho amarelo de que algo dentro da casa ardia, mas para além disso mais nada conseguiam perscrutar no negrume da habitação.
Rasi quase que tremia e Delfi engoliu a seco quando Midsat deu o primeiro passo. Todos contavam histórias das coisas que se passavam naquela casa e todas essas histórias falavam de rituais negros e sombras mal-formadas projectadas do interior da casa, mas isso não demoveu Midsat, deslocou-se até entrada e com a mão pesada bateu à porta.
A porta abriu-se com um demorado ranger e do outro lado uma cara juvenil, de um tom tão branco que não parecia natural. Era uma rapariga mais baixa que Midsat, de pele incrivelmente alva e traços infantis, tinha um cabelo ruivo, um pouco oleoso, preso num carrapito, apenas com duas madeixas caindo sob as maçãs do rosto. Ela observou Midsat de cima a baixo com os seus olhos negros escondidos por trás de uma expressão sonolenta e então anunciou com uma voz serena.

- A mãe estava à vossa espera. Por favor entrem.

A rapariga fez sinal para eles entrarem e Midsat não se fez de rogado. No entanto as duas irmãs mantiveram-se estáticas no mesmo lugar, com demasiado temor para se mexerem. Algo que a pequena rapariga ao reparou e não tardou a dirigir-se a elas com um pequeno sorriso.

- A mãe está à espera dos três. Não só do homem.

E com isso dito a menina voltou para dentro do negrume da casa. As irmãs entreolharam-se e com uma passada incerta também elas entraram no covil da bruxa.
Apesar de varias velas acesas, das janelas abertas e de uma lareira a crepitar, O interior da casa era incrivelmente escuro, como se a luz tivesse dificuldade em penetrar dentro da residência. Havia tachos e panelas em tudo quanto era canto, vários sacos e livros poeirentos arrumados em estantes e no centro estava uma mesa. Mesa essa que quatro cadeiras, onde numa delas uma mulher se sentava. A sua cara mostrava a passagem de varias estações, tinha o cabelo grisalho amarrado como a rapariga que os tinha cumprimentado e com os seus olhos quase cinzentos olhava-os com um sorriso desdentado. Midsat manteve-se imóvel enquanto Delfi tentava manter a mesma postura, tentando não mostrar o seu nervosismo, Rasi no entanto começou a murmurar uma reza a Arana por protecção. A mulher apercebendo-se do que Rasi fazia soltou um riso macabro e começou a falar.

- Não te preocupes em pedir por protecção criança. Não estás em nenhum perigo.

Rasi ficou muda após essa observação. Não esperava alguém que aparentasse aquela idade ter boa audição, quanto mais ouvir algo que pouco som tinha.

- Ouvi dizer que a senhora tem vários tipos de ervas para venda. – Disse Midsat convicto, demonstrando nenhuma perturbação.
- Ouviste bem meu rapaz. – Concordou a mulher virando a cabeça lentamente para Midsat, parecendo investiga-lo lentamente com o olhar. – Eu trabalho com muitos ingredientes mágicos e alquímicos. E em resposta à tua próxima pergunta sim, tenho o que tu queres.

Houve um pequeno silêncio na sala que deu oportunidade para as respirações fazerem-se ouvir.

- Então se sabe, a quanto fica um punhado? – Perguntou Midsat com uma voz marcante.
- Poderei dar-te, sem qualquer custo. Mas primeiro terás de fazer algo por mim.
- Midsat. – Chamou Delfi aproximando-se. – Não acho que deveríamos ter qualquer negócio com esta mulher.
- Vocês, filhas de Slosa são muito desconfiadas! – Clamou a bruxa, levantando-se da cadeira. Para além de ser baixa tinha as costas encurvadas e caminho até perto da lareira apoiando-se num bordão. – A única coisa que eu quero é fazer umas perguntas e dizer umas verdades. Aos três.
- Então faça! – Exclamou Delfi com o coração ao rubro dentro do peito.
- Pois bem. Meu rapaz diz-me, o que fazes tu aqui?
- Trabalho. – Retrucou prontamente Midsat.
- Trabalho? E é o trabalho que te move? Esta juventude já não é o que era, já não há sentido de dever, de destino. Agora é o dinheiro que vos move. Mas não… – A velha fez uma pequena pausa enquanto atiçava as brasas da lareira. – Não é trabalho. Se fosse somente trabalho não estavam aqui os três.
- O que quer dizer com isso? – Indagou Delfi tentando manter a postura e não ceder ao medo.

A velha olhou de esguelha para Delfi e depois deslocou-se para mais perto deles.

- Não vou mentir. Os caminhos do destino não são escondidos a mim. Sentem-se e talvez possa deitar alguma luz no trilho que vos trouxe aqui.

Os três sentaram-se com alguma hesitação, pois a conversa da mulher estava a perturba-los. Ela parecia muito confiante de si, sempre com um sorriso na cara e até Midsat se perguntava pelo porquê de tanta cerimónia para uma simples compra de ervas.

- Filha, prepara um chá para os nossos convidados. – Ordenou a velha para a rapariga que se tinha mantido à porta. Sem mais demoras a idosa sentou-se na cadeira em frente às outras três e continuou a falar. – Os conflitos determinam a vida. A luta para que a nascente quebre a rocha, para que o rebento brote da terra ou a luta entre caçador e a presa. Todos estes são exemplos do nosso mundo em conflito consigo próprio para criar e suster vida. E nós humanos, até o nosso primeiro sopro de vida é um combate, quando crescemos somos talhados pelos nossos conflitos e nossas lutas pessoais. E é isso que estamos aqui para averiguar.

O chá veio para a mesa num bule a fumegar. Rapidamente, o odor adocicado de frutos silvestres encheu a pequena casa conforme a rapariga o despejou para cinco chávenas. Em seguida a rapariga pegou na sua chávena e deslocou-se para um banco em frente à lareira. Os três estranharam a atitude da menina, pois o dia por sim não estava frio, coisa a que a idosa não fez caso e após beber um trago do seu chá continuou o discurso.

- Dos três podiam estar dois, podia estar um, ou até podiam ser outros desconhecidos, mas não. Os três foram encaminhados para este local pelos ventos de Anara, cada um com o seu destino marcado para o rio de almas de Deraq.

Os seus dedos compridos apontaram lentamente para Rasi, que imediatamente ganhou um tom rubro e ficou com o seu corpo tenso.

- O que o teu coração deseja irá receber. Irás viajar os ventos de mudança quando os do povo antigo acordar. Saborearás néctares divinos dessa sede que te corre pelas veias e de norte a sul encontrarás as tuas nascentes, Rasilita Fresia, filha de Slosa.

Ao acabar a profecia a anciã respirou fundo e afundou-se na cadeira como se exausta. Rasi estava pálida e absolutamente estática com os olhos esbugalhados e com a mão em frente da boca não sabendo se o seu corpo tinha força, ou vontade, de proferir uma única palavra.
Não ignorante ao estado de Rasi, a vidente, tremendo, levou as suas mãos à chávena e sorveu mais um trago do chá, colocando depois a sua mão em cima da de Rasi que se mantinha em cima da mesa.

- Bebe o chá criança. Irás sentir-te melhor. – Assegurou a anciã mudando a sua atenção para Delfi. – E que historia contas tu? Certamente não pelo caminho que mostras ir, não é? Delfi Fresia, filha de Slosa, o quanto tu escondes de todos nós. Essa força, esse fogo. Irás despertar gigantes e serás firme como as muralhas desta cidade contra eles. A tua vida passará por chama e aço até a tua pele ficar como o teu espírito.

Quando a bruxa acabou de falar a Delfi estava estática. Também como a sua irmã, Delfi não conseguia proferir uma única palavra, mas esta mantinha a aparência calma e controlada, apenas os olhos vidrados demonstravam a miríade de sentimentos que urravam dentro de si.
A anciã completou o mesmo ritual de beber o chá antes de continuar a sua profecia. Ela olhou para Midsat e com um grande sorriso nos lábios proferiu calmamente.

- Midsat Delron… - A velha fez um grande silêncio e depois continuou. - … O teu destino está um pouco próximo demais, não é? Tão próximo que se estenderes a mão quase que lhe podes tocar. E o que o teu coração te diz? O que vê ele como bem ou mal, certo ou errado? Eu vejo muita angústia, dor e malícia no teu futuro, mas também uma força capaz de lutar contra essa maré de escuridão. Serás envolto em trevas e das trevas erguer-te-á, luz ou não.

Midsat não disse uma única palavra e manteve-se estático na cadeira, apenas deixando o seu corpo pender contra as costas da cadeira.
Um breve silêncio instalou-se enquanto a anciã acabava de beber da sua malga até ao último trago.

- Agora vão. Os meus velhos ossos já não podem com estas andanças. A minha filha dar-vos-á a erva.

Sem qualquer um, dentro da pequena casa, proferir uma única palavra a mulher levantou-se com um grande pesar e deslocou-se para a frente da lareira. Em torno, a sua filha levantou-se e com as suas magras mãos retirou de um frasco um punhado de ervas e enrolou-as num saco. Em seguida, a rapariga acompanhou os três à saída e despediu-se deles com um gesto. Os três permaneceram calados, cada um envolto nos seus pensamentos e com temor de questionar os outros sobre os deles.

Passou apenas um dia desde o encontro de Midsat com a bruxa, mas para a sua mente, que não tinha largado as palavras da velha, parecia uma eternidade. E agora que se aproximava dos portões da propriedade dos Revelette as palavras pulsavam mais fortes na sua mente.

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